Enquanto estamos no pasto e nada acontece, salsichas se aproxima e me conta uma coisa esquisita: ele estava no vento quando ouviu um estrondo que bem podia ser o luar se chocando com algum animal gigante empalhado. Peguei sua pata macia e atravessamos. Não havia estação do ano alguma naquele momento. Eu aprendi a, mesmo sem acrescentar nada, continuar tentando. Eu não me empolguei muito (como ocorre habitualmente), mas insisti em trazer seu osso até meu barco para roer. Um porco inteiro espera para ser abatido. Não entendo nenhuma das dicas que me são dadas e peço outras. No momento em que acontece, as horas são convertidas em um espasmo singular. Dormimos no posto de gasolina abandonado/tomo meus probióticos e vou pra cama, onde estão todos de prontidão para me entrevistar. Tudo continua perfeitamente calmo e ruim. Eu não sinto como se houvesse uma coisa inteira para falar. Ele me faz sentir uma coisa extremada, sem solução. Existe ali uma coisa que é da realidade. O impossível não acontece, como já esperado/o assombro não inflama, não impressiona. O dia inteiro passa a ser também meu universo. Salsichas me ouve com hora marcada. Nada disso faz qualquer sentido e é sequer interessante. Esse ano foi aniversário da Naomi Kawase/Encontro um arbusto de rosas muito fracas e sonolentas/O olho é macio e não enruga. O ressentimento é infinito. Nem aqui dentro eu consigo ser devidamente sincero com as coisas. Por exemplo, espero uma palavra passar para atirar. Perco a casa inteira para um bando menor/as portas permanecem fechadas/os cachorros mijam no tapete do banheiro. Percorremos as esquinas em busca de um pequeno desfiladeiro para saltar. Nada importa. Eu tenho apenas que entender qualquer coisa, qualquer coisa que eu entenda já é suficiente. Se ele tivesse ficado por aqui e pudéssemos desfrutar de uma vida mais simples, em que meramente alguém acordasse indisposto ou com os ossos estufados, e que alguém, antes de sair, comunicasse: "oi, vou passar por uma floresta mais tarde, você precisa de algo?", e assim por diante. Coisas que são apenas construídas em uma dimensão a dois, sem enfrentamentos, sem complicações. Enquanto não acontece, uma ostra segue sentada. Eu encontro outro desfiladeiro. Uma ostra segue vazia até o terreno lunar. Eu preciso cuidar deles até o fim, é a única missão. A vida é um universo. Eu apenas abracei sua barriga. Era por volta de alguma hora da tarde. Vamos andando juntos, eu supero as coisas com muita leveza, muito humor. Eles são pessoas que eu tenho por perto e abençoo. Você rola por cima do meu pombo/eu aparo as arestas até você dormir. Um pombo agradece e se esforça. Ele é uma pessoa que é uma ostra, ele é difícil de brincar. Estamos no pasto e nada acontece. O meu amigo salsichas não me expõe a nenhuma circunstância. Eu não paro de me alimentar de sorvete em todas as refeições, mas ouço com cuidado a recomendação médica que por fim ignoro. Um coração despedaçado, empanado com farinha panko e frito na airfryer, uma porção de banana nevada para substituir o café. E quando enfim outra pessoa aparece e se posiciona, pensamos: então você quer levar esse lixo que o anterior não carregou? E rimos de súbito por uma tarde inteira até acabar. Eu não consigo mais cansar de rir. Eu não preciso dar satisfação a ninguém, apenas junto toda lenha e construo minha casa sem que ninguém suspeite, é tarde demais para começar a sair.
Quisquoses
terça-feira, 21 de dezembro de 2021
domingo, 18 de outubro de 2020
enquanto o espaço estiver morno
Eu gosto que você esteja aqui comigo e pacientemente me ajude a me recompor, a propor estratégias inovadoras para soluções mórbidas e infrutíferas. O meu barco é amplo demais. Ao nosso lado, uma ostra ornamental de jardim e mais nada. A grama estufada é uma almofada onde qualquer lesma ou pardal pode encostar e empreender. Eu estou pensando, mas pouco. Você me olha na estrada, existe uma pessoa sua que está sentada. A crise é agradavelmente sem precedentes, eu devo ligar para alguém? O sacrifício é contínuo, dispensável. A sensação é de um obscuro desconforto intermitente. Eu seguramente acho, mas sem muita certeza, que estou prestes a descobrir. Você suspeita ao meu lado, me encanto com qualquer coisa que você consiga dizer ou omitir. Eu tomo conta das nossas crianças que são pequenas bactérias gordas e não incomodam. (Ele me escuta pacientemente, não move nenhum dedo para cancelar, não torna o momento mais aprazível ou palatável). Eu não entendo, mas eu jamais diria alguma coisa a ele que não fosse para ofender ou cindir. Meu processo é estar sempre dentro do osso, sem sublevação. É sempre enganoso achar que existe uma pessoa no pasto, mas compensa repensar em outros motes, outras vias, com ou sem sucesso. Não é obrigação de ninguém observar nossa vida patética. Eu encontro nesse ondular extremo minha própria face espelhada, mas agora mais velha e pronta para ser transplantada no quintal. Meu sintoma está na fila de espera e ainda não foi vacinado.
No sonho, você é quase você, mas não é, você foge de mim até se transformar em um outro. E, enquanto outro, por que ainda estaria aqui? Eu não me lembro de que estávamos caminhando. Você ameaça sair se eu não estiver à sua espera. Você sabia que tinha o comando da casa inteira. por que abdicou de seu reino? por que não levou ao menos um saco de dormir? Você permanece severo comigo e não me devolve nenhum atalho. Saímos juntos no espaço morno para olhar o movimento, dar uma pequena volta na quadra, comprar um envelope de dorflex. qualquer coisa simples demais é de muita serventia. Podíamos até mesmo estar e permanecer em silêncio, sem combinar. O pasto está incomunicável. Se você fizer questão, podemos conversar sobre a guerra do Paraguai? Eu tenho mesmo poucas palavras para emprestar. O excesso de sono não me atrapalha. Pelo contrário, sigo arfando dentro do sonho, continuo trabalhando enquanto durmo. A situação ameniza pouco a pouco até o extremo do insuportável. Sou visitado pelos elefantes mortos de Botsuana/passa um aro extremo sobre minha cabeça enquanto as patas dos animais são carimbadas na testa para abençoar. Acordo aterrorizado com o rosto de silicone de Carlo Acutis me observando. Todos os ossos entram na fila e são moídos ao despertar. Eu não sabia onde era o começo, eu não estava feliz (nunca estive), ainda que você, como poucos, tenha aprendido a sair daqui sem sequelas, sem estrias. Eu não espero mais um sinal em silêncio. Se eu tiver que entrar em alguma dimensão para encontrá-lo, você poderia fazer o favor de me informar? não posso entrar na dimensão errada à toa. Tenho coisas demais para resolver em um curto período, e qualquer dia ou minuto perdido é uma sombra que ao mesmo tempo se acumula e me escapa. Por favor, tenha cuidado com o meu sintoma. Tenho um protocolo a cumprir, uma ossatura a preservar, e espero com sinceridade sua colaboração no processo, enquanto o espaço estiver morno.
sexta-feira, 10 de julho de 2020
obrigado a todos que submergiram
terça-feira, 31 de março de 2020
Às vezes vejo um vulto e me alegro
segunda-feira, 23 de dezembro de 2019
Pantufas se foi
Pantufas se foi. Eu seguiria sem meu osso para procurá-lo, mas ainda não cresceu uma manhã, e eu não entendo como produzir um começo. Ele já deve estar perto ou longe? caminhei dezoito quilômetros na garoa florescida sobre a cidade. É ridículo demais, eu cabia em suas costas. meu amigo ainda não espera por mim? ainda que eu possa amar sua barriga? meu amigo me assusta quando não me espera. Ele me diz para ficar calmo, eu já disse que continuo apenas por um pontilhado fraco, quase no fim. posso cortar novamente suas unhas com calma, escovar sua crina macia pela manhã. Todos já morreram, eu fui o último que restou? O último de um bando disforme? Fortifico nossa casa. se você voltar, posso tricotar uma cortina, posso retirar os tijolos e lixá-los um a um, sem problemas, e posso limpar a mesa empoeirada. A árvore cresce para cima elevando também os fios de luz tão macios, agradáveis. Levo você até ali embaixo para ver os fios, você ronrona junto a mim, eu abraço você por inteiro, aperto sua barriga e mordo a pele fininha das orelhas. você apenas ronrona e ri até das minhas varizes. Não há mais lâmpadas em flor a serem acesas em um fio. Você torce meu pescocinho para me ajudar a continuar. Guarda minhas pedras em sua mochila pesada. Retorna minhas ligações do ano anterior. Me lembra todo dia, ao acordar, de que sou uma pessoa. Eu custo a lembrar. Com sono, encosto a mão em sua pata. Um mosquito pousa em algum lugar do cômodo. Eu observo sim, é claro. Ouço vozes de crianças me macetando. Não desejei feliz páscoa a ninguém. Eu acho que meu amigo está muito forte – ele conseguiria rolar comigo lá fora, brincar no pasto, incendiar qualquer um que se opusesse. Preparo os ovos desidratados para nossa próxima refeição. às vezes me perguntam se já estou dormindo. Saímos para mais um jantar logo depois de comer. Você pode me ajudar, você foi ensinado a roer. Roemos uma estrutura de aço inteira em poucos dias ou horas. Você puxa a abertura e me coloca como se eu fosse estar confortável. Eu finjo que estou e prossigo (não posso desagradá-lo, ele pode me deixar sucessivas vezes, para sempre). estoura uma lâmina no meu ouvido direito. não quero ter que recortar suas pálpebras, pois estou absolutamente sozinho e precisaria de alguma ajuda humana para resgatar. A vegetação é espessa, cai um pedaço antes de dormir. Faz sentido transitar aqui? Um olho em meu jardim pequeno, This coming gladness em meu funeral. Josefina entrega um buquê de qualquer flor ordinária que ela catou em um terreno baldio. Desejo então um bom dia a todas as coisas que acontecem, ao gato que olha e dorme, à pomba que se desfaz sobre a cama, ao arado tombado na porta, a esse desfiladeiro ao meu lado, ao demônio que me comunica quieto e deixa meus chinelos enfileirados para minha comodidade pela manhã. Agradeço a cada um individualmente, você me ergue do chão, estou encapsulado. Colocamos nossas capas de chuva, a minha está furada como uma peneira, a sua não chega a servir, mas fingimos muito cuidadosamente e saímos pelo meio do mato. Decidimos existir praticamente do nada! Uma coisa acontece, um céu muda seus contornos, sua base de sustentação. Eu rio de qualquer coisa parada. meu amigo salsichas devolve seu pequeno olhar para mim e eu desabo, choro durante setenta minutos e paro logo depois para escorrer o molho das lentilhas que já começam a brotar. Sento-me seco sobre uma coisa qualquer, paro de respirar por um momento e depois volto. Você era a única pessoa que compreendia meu sonambulismo crônico. Como prosseguir sem romper? Retiro alguma coisa que eu disse para fazer você voltar. Ele me olha fixo e diz: "você é meu companheirinho, você não é corajoso, eu também te amo, etc". Eu não consigo chegar a nenhuma parte de mim e nem dos outros. Eu posso tranquilamente desovar cada um deles, mas não você. Mas, e se você estiver certo? E se você esteve certo esse tempo todo e eu sou uma pessoa? Eu rio demais sem conseguir entrar no papel. Eu me lembro a todo momento e me canso, vou ouvir para sempre seu relinchar alegre. E cada vez que levantar da cama pensando em morrer. E cada vez que souber de uma coisinha no quintal, ou cada vez que começar a suspeitar. Agora estou sinceramente partido no meio. De onde vem esse prazer enorme em não pertencer? Duas cavernas se abrem na minha frente e eu entro na segunda. E se hoje digo a você que quero sair? Vamos até o ponto mais próximo, com certeza, a qualquer lugar em que a coisa esteja acontecendo. Ah, vamos sim... eu escovo os dentes maciamente enquanto espero, meu amigo traz toda a roupinha para que possamos sair calmos, indigestos. Você pode encaixar todo tormento em mim e me embalar como se eu fosse o seu tormento. Por todo o trajeto eu não penso que não vou me divertir, pois ele nunca está comigo por brincadeira. Eu celebro cada segundo, apenas me certifico de que meu cálcio esteja sendo absorvido lentamente, sem interromper. Porém, se não tenho mais imaginação, preciso ser levado ao outro lado contigo. Duas horas antes de receber a notícia, escrevi "Eu não posso vê-lo crescer. Eu já estou restrito a um outro universo". Que universo é esse? isso agora é fundamental. Se eu machuco a minha membrana no caminho, você interrompe comigo para reanimar. Volte e me ajude a cuidar por mais um segundo, antes que eu me esqueça! se eu pular fora antes do momento marcado, algo inesperado pode acontecer. Eu já estou pronto para decidir. Não há nenhuma opção no forno, e estou sozinho. Eu posso remar, mas preciso de ajuda, eu preciso que você me ajude a me mover para as próximas horas, senão não consigo definhar. Você não entende que por alguns dias sou incapaz de existir? Achei que você pudesse entender. Você não pode – como ele fez – me dizer que a maionese é uma bela comida, que as coisas são assim e assado, etc. Eu desafio qualquer coisa que possa estar chegando, você me incentiva a continuar sem osso nenhum, vê se pode! Incrível como nenhum osso. O trem está pegando fogo? Por que eu vomitava tanto? Acho que isso também eu nunca te contei. Éramos resolutos e infelizes. Você também pode supervisionar a minha barriga enquanto caminhamos no quintal. Eu deduzo que há uma terceira pessoa aqui conosco rindo por trás da minha cabeça, preparando o campo para me decapitar. Eu sinto e ele ri, ri por completo. Agora é como se todas as horas também estivessem dormindo, ressonando.
sábado, 23 de março de 2019
obituário tardio
sábado, 29 de dezembro de 2018
Testamento
sexta-feira, 7 de setembro de 2018
Há um número de pequenas coisas
quinta-feira, 26 de julho de 2018
Eu fico feliz que você esteja dormindo
quarta-feira, 6 de dezembro de 2017
Despedida
domingo, 15 de outubro de 2017
Pós-apocalipse
sábado, 2 de setembro de 2017
A qualquer momento pode vir o cometa
A qualquer momento pode vir o cometa
A qualquer momento pode vir o cometa
A qualquer momento pode vir o cometa
A qualquer momento pode vir o cometa
terça-feira, 22 de agosto de 2017
sonolência ou arrebatamento
Depois da viagem monumental, chegamos a uma clareira no miolo da cidade, e ali cada um recebe a sentença que já vem cozida e enlatada, torrada e partida, e espera em uma fila medíocre, procura um abrigo até que venha o juízo final. A terra é pouco a pouco invadida por anjos de alguma facção nova ou pouco conhecida. Então um demônio puxa a cadeira para que eu possa me sentar. Em uma grande floreira achatada após um atropelamento, agradecemos a todos por terem sobrevivido a essa maré conosco, mas daqui em diante o que se passa é pura brutalidade sem salvação. estranho como ossos sem lágrimas. A atmosfera é sinistra e risível, o evento é uma grande farsa e todos já suspeitam de um derramamento gratuito de sangue. Antes que seja possível raciocinar, o primeiro anjo sobe a escadaria da igreja, toca a trombeta e as árvores e ervas verdes queimam festivamente sem qualquer comoção. As vespas sofrem um lamento e compartilham do mesmo sinal vaporoso. Elas são retorcidas por cima, assim, veja: (o anjo faz o sinal e nos mostra). úmidas e diminuídas. não há nada que possa estancar a dor. coletamos algumas algas com um escorredor de macarrão e fazemos uma compressa tão quente que só termina de esturricá-las. Eu olho as carcaças e me espanto com seus ossos expostos/o assombro é denso e me cancela o riso. Do outro lado da cerca elas renascem com asas aveludadas e são arrebatadas uma a uma. damos bom dia a todas as vespinhas. Todos os olhos são voltados para elas. É quando o segundo anjo despenca do edifício e, ainda torto no chão, toca desafinado e quase sem fôlego a sua trombeta, e um terço de todo mar que não vemos daqui se transforma em sangue espesso. O anjo esfolado também cumprimenta as vespinhas. E eu sinto que ainda falta um preenchimento absurdo. O terceiro anjo acende um cigarro em meio a multidão e caminha tão calmo e preciso... ele nos olha e diz: não tem problema algum se vocês não estão existindo. E depois some. Uma estrela gigantesca e brilhante cai bruscamente do céu, estouram-se as lâmpadas e ela se apaga para sempre. Tambores desconhecidos ressoam tão longe... A nós humanos nos falta um órgão capaz de digerir o absurdo. De uma porta escancarada sai o quarto anjo e dispersa a multidão com bombas de gás lacrimogênio. a terra escurece e cada animal, planta e pedra passa a tossir incessantemente até esburacar. O quinto anjo, como profetizam as escrituras, traz consigo a chave do poço do abismo. Eu não pude saber, pois já morri e não fui solicitado. As trombetas tocam uma a uma, suportamos tudo cuidadosamente sem perecer. eu já morri há alguns anos e não fui iniciado nessa jaula. Achamos tudo de um mau gosto sem fim. meu deus, olhe o rastro sinistro deixado na estrada e nos olhos. A vida é maravilhosa/um sol surge sobre um quintal/uma criança morre em Aleppo/um tumor domina um ovário. mais nada. O sexto anjo rola de cima de um avestruz, cai de costas no chão e diz: mais nada. E apenas isso. Com ajuda dele, fazemos as malas rapidamente e desistimos de cada coisa precisa. Depois ele solta os quatro anjos de pé nas extremidades do planeta, eles matam um terço de todos e descansam. Assim a atmosfera amorna e engrandece. O sétimo anjo ordena que todos fiquem quietinhos enquanto o assombro não vem. Com todas as instruções anotadas em um manual, ele avisa que em caso de emergência, linhas telefônicas e energia elétrica serão cortadas por alguns minutos, horas ou mesmo anos, mas que podem ser restituídas normalmente nas primeiras horas do próximo dia útil. Ele também avisa que a subida é para poucos e, ainda que gratificante, vertiginosa. Recomenda-se alguma medicação para os que tiverem estômago frágil. Àqueles que possuem labirintite, recomenda-se que aguardem o guindaste para poder subir com conforto e segurança, e assim por diante. Agora, se tivermos de realizar a travessia, estaremos muito mais preparados! pois sim, estaremos mais preparados, e mal podemos esperar pelo fim. O saldo foi positivo, sem sombra de dúvida. mesmo com toda ansiedade, o mundo foi feliz e trouxe ossos para dentro de nossos corpos. O anjo segura as batatas enquanto maciamente costuramos o cadáver que deixamos descongelando da noite para o dia. É uma criança que volta à vida assustada e roga por um balde de água fresca para reidratar as membranas, mas que é ainda incapaz de falar. então pede grunhindo, e nós, é claro, prontamente atendemos. obrigado por continuar tão azul e sem cor! a coragem da criança me emociona, eu voo até a palma de um outro lugar, espero com a floração nova nos ombros, caio até rolar do precipício. tudo é tão enfadonho que rolamos pelo asfalto e dormimos por exatas setenta e oito horas até o evento acabar, e não acaba. O sétimo anjo apenas coroa o bolo e cai em sonolência. quem dera pudéssemos dormir também, mas não: temos de enterrá-los antes! avise o anjo que ronca, avise que temos de enterrá-los antes para que possamos ir. por isso a conclusão é simples. O anjo acorda e ajuda a pulverizar um silêncio voraz. Depois de minutos, um apodrecimento suave arranha a hostilidade do tempo. Enquanto ele segura as batatas, torcemos a porta para o horizonte. “eu preparei o livro e comi” – disse a pobre criancinha, e envelheceu junto de todos ao longo dos milênios até morrer. Tão compacta, tão pequena... mais ou menos do tamanho de uma ostra de jardim. O livrinho, que deveria ser doce como mel, tornou-se amargo ao ser engolido. Mas que floração ridícula! retire-os daí, corremos fazendo sinais enigmáticos usando nossa própria sombra duplicada. tire-os o mais rápido daí, por favor, tire-os rápido o bastante para que não sejam deixados, ignorados aqui. O livro amargou o ventre da criancinha que estava quase liberta. Esforçando-se para ter um mínimo de empatia, o anjo disse-lhe: “eu também tendo a não ser muito feliz”. e depois de alguns segundos de silêncio ruborizado, os dois riram, riram juntos. riram até enfartar. ainda estão rindo, na verdade. quando uma parede aponta para nós, ou o caldo suave amorna no prato, então, ainda estamos rindo aqui embaixo e continuamos. E assim vai. uma montanha sonolenta também é arrebatada vagarosamente com a ajuda de um guindaste para compor as curvas do horizonte no paraíso. Todos que estão sendo arrebatados não possuem rosto. O encerramento do evento não faz com que todas as respostas sejam encontradas. pelo contrário. Há uma profunda confusão mental penetrando cada poro dos que ainda estão ali. também entre os abandonados não se vê mais o rosto de ninguém. ainda estamos na caverna? no túnel? na praça? na montanha recrutada? na montanha não estamos, pois não fomos arrebatados. No túnel não estamos, pois pudemos presenciar o arrebatamento. Ainda há tantas coisas no mundo, lesmas retorcidas ao queimar, rochas coradas de calor, enxofre vazando do encanamento, coisas que queimam sutis. Aos poucos todos os pequenos foram arrebatados, uma doce luz ressurge. que luz quietinha, diz uma criança retorcida no asfalto antes de subir. A atmosfera toda é rosada pelo sol murchando no céu, o espaço todo é vazio, acobreado, triste e pequeno. quem olha ali dentro não entende coisa alguma, ninguém consegue dar um passo sequer sem cair em uma rede pendurada como armadilha. sem enfrentar o peso do mundo inteiro. mas também a morte não existe ali dentro porque já aconteceu. todos que estão queimando e percebem isso, cedo ou tarde são pegos sorrindo ou mesmo gargalhando, construindo com migalhas imundas alguma tranquilidade hipnótica. Dizem que alguns deles, inclusive, depois de queimar completamente e perder para sempre todas as suas terminações nervosas, tornam-se monges e resistem para sempre em alegria apática. Os mais prestativos já ajudaram, mesmo cobertos de queimaduras de terceiro grau, a cobrir toda essa ossatura negativa, ajudaram também a varrer a poeira e desativar a coisa amarga que revolve no estômago. A vida é excessiva dentro de qualquer inferno. Os que estão abandonados também enfrentam o peso do mundo inteiro, constroem mapas e forjam estratégias para trazer para dentro do inferno o inseto e o meteorito abaixo do estômago, sem assustar.
domingo, 30 de julho de 2017
nota no.4
As rosas com bolores
Tenho sempre perto de mim
geralmente na minha mesa de cabeceira
um ramo de rosas
todas as manhãs a primeira coisa
que faço quando acordo
é observar atentamente as rosas
a ver se algum bolor poisou
na pele das rosas
quando isto acontece
é muito raro
mas eu gosto de coisas preciosas
e sou paciente
deixo de dormir
para observar o crescimento
desigual e lento do bolor
a pouco e pouco o bolor
vai cobrindo a pele da rosa
ou antes
alimentando-se da pele da rosa
adquire o feitio da rosa
mas a pele da rosa
não esta por baixo do bolor
desapareceu
é preciso estar sempre atenta
porque no instante em que
o bolor não pode alastrar mais
a não ser alastrando-se sobre
si próprio
e alimentando-se de si próprio
ou seja suicidando-se
naquele acto de infinito amor
por si próprio
que é afinal todo o suicídio
a rosa pode andar pelos seus pés
antes de ela partir
beijo-a na boca
depois ela parte
e desaparece para sempre da minha vida
então eu vou dormir
porque estou muito cansada
as rosas com bolores cansam-me.