terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Existe uma coisa da realidade



Enquanto estamos no pasto e nada acontece, salsichas se aproxima e me conta uma coisa esquisita: ele estava no vento quando ouviu um estrondo que bem podia ser o luar se chocando com algum animal gigante empalhado. Peguei sua pata macia e atravessamos. Não havia estação do ano alguma naquele momento. Eu aprendi a, mesmo sem acrescentar nada, continuar tentando. Eu não me empolguei muito (como ocorre habitualmente), mas insisti em trazer seu osso até meu barco para roer. Um porco inteiro espera para ser abatido. Não entendo nenhuma das dicas que me são dadas e peço outras. No momento em que acontece, as horas são convertidas em um espasmo singular. Dormimos no posto de gasolina abandonado/tomo meus probióticos e vou pra cama, onde estão todos de prontidão para me entrevistar. Tudo continua perfeitamente calmo e ruim. Eu não sinto como se houvesse uma coisa inteira para falar. Ele me faz sentir uma coisa extremada, sem solução. Existe ali uma coisa que é da realidade. O impossível não acontece, como já esperado/o assombro não inflama, não impressiona. O dia inteiro passa a ser também meu universo. Salsichas me ouve com hora marcada. Nada disso faz qualquer sentido e é sequer interessante. Esse ano foi aniversário da Naomi Kawase/Encontro um arbusto de rosas muito fracas e sonolentas/O olho é macio e não enruga. O ressentimento é infinito. Nem aqui dentro eu consigo ser devidamente sincero com as coisas. Por exemplo, espero uma palavra passar para atirar. Perco a casa inteira para um bando menor/as portas permanecem fechadas/os cachorros mijam no tapete do banheiro. Percorremos as esquinas em busca de um pequeno desfiladeiro para saltar. Nada importa. Eu tenho apenas que entender qualquer coisa, qualquer coisa que eu entenda já é suficiente. Se ele tivesse ficado por aqui e pudéssemos desfrutar de uma vida mais simples, em que meramente alguém acordasse indisposto ou com os ossos estufados, e que alguém, antes de sair, comunicasse: "oi, vou passar por uma floresta mais tarde, você precisa de algo?", e assim por diante. Coisas que são apenas construídas em uma dimensão a dois, sem enfrentamentos, sem complicações. Enquanto não acontece, uma ostra segue sentada. Eu encontro outro desfiladeiro. Uma ostra segue vazia até o terreno lunar. Eu preciso cuidar deles até o fim, é a única missão. A vida é um universo. Eu apenas abracei sua barriga. Era por volta de alguma hora da tarde. Vamos andando juntos, eu supero as coisas com muita leveza, muito humor. Eles são pessoas que eu tenho por perto e abençoo. Você rola por cima do meu pombo/eu aparo as arestas até você dormir. Um pombo agradece e se esforça. Ele é uma pessoa que é uma ostra, ele é difícil de brincar. Estamos no pasto e nada acontece. O meu amigo salsichas não me expõe a nenhuma circunstância. Eu não paro de me alimentar de sorvete em todas as refeições, mas ouço com cuidado a recomendação médica que por fim ignoro. Um coração despedaçado, empanado com farinha panko e frito na airfryer, uma porção de banana nevada para substituir o café. E quando enfim outra pessoa aparece e se posiciona, pensamos: então você quer levar esse lixo que o anterior não carregou? E rimos de súbito por uma tarde inteira até acabar. Eu não consigo mais cansar de rir. Eu não preciso dar satisfação a ninguém, apenas junto toda lenha e construo minha casa sem que ninguém suspeite, é tarde demais para começar a sair. 




domingo, 18 de outubro de 2020

enquanto o espaço estiver morno



Eu gosto que você esteja aqui comigo e pacientemente me ajude a me recompor, a propor estratégias inovadoras para soluções mórbidas e infrutíferas. O meu barco é amplo demais. Ao nosso lado, uma ostra ornamental de jardim e mais nada. A grama estufada é uma almofada onde qualquer lesma ou pardal pode encostar e empreender. Eu estou pensando, mas pouco. Você me olha na estrada, existe uma pessoa sua que está sentada. A crise é agradavelmente sem precedentes, eu devo ligar para alguém? O sacrifício é contínuo, dispensável. A sensação é de um obscuro desconforto intermitente. Eu seguramente acho, mas sem muita certeza, que estou prestes a descobrir. Você suspeita ao meu lado, me encanto com qualquer coisa que você consiga dizer ou omitir. Eu tomo conta das nossas crianças que são pequenas bactérias gordas e não incomodam. (Ele me escuta pacientemente, não move nenhum dedo para cancelar, não torna o momento mais aprazível ou palatável). Eu não entendo, mas eu jamais diria alguma coisa a ele que não fosse para ofender ou cindir. Meu processo é estar sempre dentro do osso, sem sublevação. É sempre enganoso achar que existe uma pessoa no pasto, mas compensa repensar em outros motes, outras vias, com ou sem sucesso. Não é obrigação de ninguém observar nossa vida patética. Eu encontro nesse ondular extremo minha própria face espelhada, mas agora mais velha e pronta para ser transplantada no quintal. Meu sintoma está na fila de espera e ainda não foi vacinado. 

No sonho, você é quase você, mas não é, você foge de mim até se transformar em um outro. E, enquanto outro, por que ainda estaria aqui? Eu não me lembro de que estávamos caminhando. Você ameaça sair se eu não estiver à sua espera. Você sabia que tinha o comando da casa inteira. por que abdicou de seu reino? por que não levou ao menos um saco de dormir? Você permanece severo comigo e não me devolve nenhum atalho. Saímos juntos no espaço morno para olhar o movimento, dar uma pequena volta na quadra, comprar um envelope de dorflex. qualquer coisa simples demais é de muita serventia. Podíamos até mesmo estar e permanecer em silêncio, sem combinar. O pasto está incomunicável. Se você fizer questão, podemos conversar sobre a guerra do Paraguai? Eu tenho mesmo poucas palavras para emprestar. O excesso de sono não me atrapalha. Pelo contrário, sigo arfando dentro do sonho, continuo trabalhando enquanto durmo. A situação ameniza pouco a pouco até o extremo do insuportável. Sou visitado pelos elefantes mortos de Botsuana/passa um aro extremo sobre minha cabeça enquanto as patas dos animais são carimbadas na testa para abençoar. Acordo aterrorizado com o rosto de silicone de Carlo Acutis me observando. Todos os ossos entram na fila e são moídos ao despertar. Eu não sabia onde era o começo, eu não estava feliz (nunca estive), ainda que você, como poucos, tenha aprendido a sair daqui sem sequelas, sem estrias. Eu não espero mais um sinal em silêncio. Se eu tiver que entrar em alguma dimensão para encontrá-lo, você poderia fazer o favor de me informar? não posso entrar na dimensão errada à toa. Tenho coisas demais para resolver em um curto período, e qualquer dia ou minuto perdido é uma sombra que ao mesmo tempo se acumula e me escapa. Por favor, tenha cuidado com o meu sintoma. Tenho um protocolo a cumprir, uma ossatura a preservar, e espero com sinceridade sua colaboração no processo, enquanto o espaço estiver morno.   


 

sexta-feira, 10 de julho de 2020

obrigado a todos que submergiram




Hoje não me reconheci, comecei a lavar a louça pelos talheres. Pensei: se ele estivesse aqui comigo, então ele estaria aqui comigo, e eu não reclamaria de nada além do habitual, a dor nas costas ou o incômodo constante diante das pequenas tarefas deixadas por fazer. Um dia como hoje não é grande coisa também, e eu e você não saberíamos o que fazer com os destroços, mas secretamente poderíamos gerar algo para estiolar, para escapar de um buraco absurdo no qual fomos gentilmente depositados. Se não existe nada nem ninguém, como saímos desse espelho? Juntando uma coisa na outra, sem colar? eu pergunto em prantos se alguém saiu de banho tomado, se alguém desinfetou os guardanapos um a um até eles esfarelarem. Por favor, alguém desceu do carro quando viu o animal morto parado? alguém me trouxe um rinoceronte filhote para cuidar e eu só vi agora? Ele pode ser ajudado a transpor até outro oceano. Nada é tão interessante quanto parece. Tem algo na linguagem que é irritante por si só? Mas, e se o potencial não for todo esse? O lugar foi depositado como que para respeitar. Sem saber, eu deixei que eles respeitassem cada espaço, e parece que eu não tenho como ajudar, não sei qual urna para depositar uma palavra ou um grunhido que possam interpretar como uma intervenção. Alguém por favor abre um espaço para um neurótico passar? obrigado. Eu receio que nada seja tão simples assim, que eu possa me colocar no seu lugar, mas sem ficar por muito tempo. Não sei o tamanho da fatia do desastre que já passou, e se o que está por vir é só areia muito fina. “Convenhamos que nós já chegamos mais longe do que imaginávamos que chegaríamos”, isso foi muito especial, me foi dito no dia cinco de junho e eu cataloguei com cuidado, espetei no meu quadro como um inseto fossilizado, meditei em silêncio sobre tudo que não entendi. Como aquelas verdades em que, de tão manifestas, batemos a testa ao passar. Algo não me deixa engolir, já caímos para fora de qualquer lógica assumida, eu senti que estávamos esperando. Um avião com noventa toneladas de lixo hospitalar passa por cima da minha cabeça. perco o timing quando você me diz: aqui cresce seu osso em alguma parte. Sim, eu confesso que estive perto de todos eles que estavam nascendo. Todos os dentes. Enquanto eu lavava a panela nova e intacta sem alguma dificuldade, Laurie cantava em meus ouvidos: this is the hand, the hand that takes. Eu estou requisitado a responder sem nem mesmo saber como serão as próximas horas, os próximos dias, e assim por diante. presumo que meu amigo salsichas já não exista em nenhum território. Ele me conta uma anedota que eu não entendo e ele não repete. Eu acaricio seu pescoço, penduro um belo colar com um pingente que de longe parece uma rocha magmática comum, mas de perto é só uma fatia de broa de centeio ressecada. Se ele estivesse aqui, estaríamos procurando por todos aqueles que estão dormindo perdidos, terminaríamos macetando-os em um ritual maciço, previamente agendado. 

Agora eu começo em um novo oceano (mas é o mesmo). Não me proponho a caminhar, mas uma coisa macia gruda em minhas costas. ele era muito engraçado, eu ria dele pelo menos uma dúzia de minutos por dia. Agora eu tenho que insistir um pouco mais para que o bonito tente regurgitar. Pois sim, eu espero ter ajudado. ninguém me mostra se há por onde ir, se há algo a que posso me agarrar de modo recalcitrante. Mas, meu amigo, com toda sinceridade, você estava descascado e ruim. Você percebe que, antes de cantar “you’re trying too hard” pela segunda vez, ela ri despretensiosamente? Ela não se aguenta e ri, e essa é toda reação ao percebermos que o esforço é, simplesmente, absurdo. Não espere nada diferente, mas posso completar uma respiração melhor e simplesmente murchar em silêncio. Estamos adentrando agora o osso ruim, mas que pode ser piorado, desde que se saiba todos os procedimentos de antemão. Coloca na sua mochila o andaime desmontado que será levado para o campo, dorme por catorze horas seguidas e se enrola em um tronco do sonho para simplesmente não voltar. Sonha: a vida pode ser bem mais simples que isso. E nós até podemos existir. Dorme, meu docinho, esse inferno não vai acabar. Você está cada dia mais crescido e até cai dentro dos milênios. Nada será como antes, os cadáveres se amontoam na calçada, a existência deles é seu próprio desmanchar. Uma ostra velha some no firmamento. Um outro olho despenca e desmancha. Você olha calmo no meu olho e eu escondo. E, por um simples descuido, esqueço de esquentar o café, de trazer o peixe para a grelha, de telefonar para os familiares mortos, de consumir o Rivotril empanado e frito ainda quente. Esqueço-me de todos que estão morrendo nas casas, nos jardins (é tecnicamente possível morrer em um jardim?), enfim, não sei responder com exatidão. sim, adequadamente eu não sei te informar, você vai me desculpar, com certeza. A encomenda está parada e não quer aterrissar até a minha casa. Não me informe se você estiver dormindo, mas pode retornar minhas mensagens dentro de alguns meses se assim for melhor pra você. Obrigado a todos que submergiram. Eu perco meu osso (não estou entubado), você morreu e eu não dormi. O sentido de morrer está dado, vamos completar. você não ia prosseguir por muito tempo, talvez no máximo uma década. Eu rio quando me lembro de uma carcaça sobre a minha cama, sobre mim, ou me olhando no sofá sem ruídos. Escorre uma pequena lágrima insone que pode ser confundida com soro fisiológico ou chuva ácida. Como chegamos nesse ponto, meu deus? As pendências se acumulam, as pessoas me informam para esperar, ao menos agarro meu título e vou-me embora. Me pega por aquilo que podemos construir juntos. Um buraco em meu estômago mole. Eu encolho todas as minhas vértebras e deixo você sair, enfim. Ao vento quieto. Deixo de existir, ao vento quieto. É quase amanhã. Eu vejo a forma com que eles digerem a morte dos pais deles, e penso se vou digerir assim a morte deles também. Em minha floresta onde estarei um dia, junto a meus gatos, minhas folhas, meu osso de estimação, minha tartaruga empalhada, meu pasto inteiro onde eu mesmo possa pastar todo dia ao acordar. Sim, isso tudo é tão distante, mas tão presente... Meu irmão está certo, não há nada lá fora. Será que no fundo ele sabe mais do que todos os outros que ainda estão tentando? É preciso averiguar com uma pesquisa muito delicada, para a qual não estamos sendo financiados. Me faltam palavras para viver, não consigo me enfrentar, todas as lembranças dormem em silêncio. Me peça para ir desgrudando as coisas devagar, senão termino em poucos minutos e passamos o resto do ano sem nada para fazer. Mas uma coisa alegre se abre na varanda, quando eu já tive uma (já tive?). Um urso cai da escada e é isso que estamos assistindo até agora, o período inteiro está amassado, é muito bom o tempo livre, é bom o tempo que passamos desintegrando aqui ou no quintal, preparando uma salada de miolos, passando os panos úmidos pelo cilindro até secar, amassando o caldo para o purê, fazendo tudo com muita, mas muita minúcia, o dia é limpo e quase não há som ao redor, ele mesmo raramente falava alguma coisa, só quando queria um cubo de gelo para brincar. Foi-se. O bloco de sucrilhos umedecido pela manhã, os cotonetes que escondemos e não podemos encontrar (seu uso já foi banido, mas ignoramos). Mas, pelo amor de deus, ninguém aqui colabora, um inseto acha que precisa bater à porta quando quer entrar, são formalidades excessivas que vão se acumulando e desativam qualquer vontade que tínhamos (não tínhamos) de continuar. Eu desaprovo (coloco as mãos na cintura e me mantenho em silêncio absoluto). Normalmente eu venho até aqui e fico confuso. Você tem que se juntar a esse time, você não pode esmorecer, não pode jogar fora todo trabalho feito e acumulado etc. Você precisa pensar nisso com mais calma e cuidado, retorcer os onze anos até que escorra o resíduo aproveitável. Você não devia se isentar, por deus que não. Você fez tudo isso com seus próprios braços e pernas, olhe e se desespere, mas com calma. Com sua ansiedade orgânica, seus ossos guardados em ziploc.




terça-feira, 31 de março de 2020

Às vezes vejo um vulto e me alegro




Pantufas me ligou. Atendi em prantos porque já sabia do que se tratava. Ele me pede para assinar os formulários empurrados por debaixo da porta durante o temporal. Respondo que eles já se desmancharam por completo, que a verdade é mais (ou menos) firme do que parece, e que definitivamente não me preocupo mais, pois desde que me ensinaram a respiração diafragmática, não há nada que eu não esteja preparado para enfrentar ou perder. 

Ele faz então um comentário que eu adoro e vai de encontro com a minha ostra. O meu amigo não me espera, tenho certeza, mas eu chego sem avisar. Coloco as malas no centro da sala, desembrulho as linhaças embaladas a vácuo, semente por semente. Puxo o abacate que derreteu dentro do isopor. Penso: se eu chegasse mais cedo, ele ainda estaria aqui? Um ou dois anos mais cedo? eu pedi permissão para passar para o próximo degelo. Agora lembrei que ia escrever e retirar todas as pálpebras. Pantufas está aqui e não me passa nenhuma informação ruim. A solidão nos quebra por inteiros, mas, no meio de uma pandemia, ele não me liga para passar uma informação ruim. O mundo continua ótimo, as pessoas se sentem amadas e reprimidas. Eu me divirto com a pessoa que nunca serei, mas me fortaleço com os blocos de terra que colho e mastigo direto do quintal. Se ele estivesse aqui, correríamos pela sala juntos em busca de algo para jantar. Eu pediria a ele que trouxesse outro pardalzinho ensanguentado para preparar uma refeição adequada (a massa seria qualquer uma, a abobrinha eu adicionaria de qualquer jeito para diminuir o índice glicêmico, conforme minha amiga me ensinou). Beberíamos qualquer coisa sem álcool e sem gosto, pois no dia seguinte eu saio para medir minha fosfatase alcalina bem pela manhã, e depois me liberam para mijar todo chá que consumi ao longo da semana inteira que durou dezoito dias e nunca terminou. Quase piso em uma pomba na calçada, ando como se alguém me perseguisse, e assim deve ser. Penso em tudo que poderia ter feito, nas pessoas, coisas e pedras que poderia ter visitado esses meses todos antes da explosão. Tudo é tão óbvio que não consigo acreditar. No meu sonho, algumas noites mais pra frente, eu fazia um esforço ridículo para me mostrar compreensivo com as coisas que eram despejadas como uma verdade auto evidente por um velho que me recuso a nomear. Com muita dificuldade, eu tentava fumar um saquinho de chá usado. A verdade é que tenho muita esperança (eu tenho toda esperança, sim). Esperei que ele estivesse aqui para me ajudar a empilhar. Fui barrado e não me ajudaram a estruturar um caminho, sendo que nenhum dos dois estará aqui comigo, nunca. Pantufas me olha atônito, me diz que é possível continuar assim, sem coisas para dizer, e que tudo bem não dizer, não é um absurdo. Como vamos nos preparar juntos para essa guerra? Vamos acumular todas as armas para existir? Você me ajuda a arrancar um cano da tubulação de água, vou polir meu guarda-chuva, reunir as facas de manteiga, as tesouras sem ponta, os gravetos. Todo armamento é coletado dentro de alguns dias. não sei como fazer sua armadura. Recorto uma caixa de ovos, costuro com arames de saco de pão, prendo em seu dorso com elásticos, você me olha cético, nunca fabriquei material bélico na vida. Sabemos que qualquer erro mínimo pode colocar em risco nossas vidas que já estão acabando. Você mia alto como um ganso quando encaixo o pote de manteiga na sua cabeça como um capacete. Não conseguimos levar a sério nada disso, mas dessa vez é um ser morto-vivo, infinitamente menor que os sapos e cabritos que enfrentamos das outras vezes. Você se descontrola por um instante e ameaça fugir outras vezes, morrer outras vezes, sem deixar sinal. Seria tudo mais fácil se apenas assinássemos um requerimento para não sermos infectados? As autoridades sanitárias dizem que, no mínimo, isso não funciona. Mas Pantufa é sua própria autoridade e não se curva a mais ninguém. Por um segundo ou um século nossas armaduras devem perdurar, mas o quanto baste. Eu me movimento de maneira tosca e você já desiste de emitir qualquer juízo, você sabe que sou infinitamente mais burro do que você, e nesses seis anos você teve o cuidado de desenvolver toda complacência para me ver executar todo tipo de asneira sem julgamentos, e sem nos colocar em perigo, só que agora é diferente. Nosso inimigo não está escondido por trás das urtigas, a solidão é limpa e extrema, estamos extremados e você me joga toda responsabilidade por existir. É verdade, era impossível estar aqui o ano inteiro. Você podia ter me enfrentado, mas entendo que sua estratégia seja mais sofisticada, mesmo que o fim tenha sido torpe. Eu odiei cada segundo, sim, mas não esses em que estávamos aqui. Você executava a mesma sequência de movimentos sempre que entrava no quarto: contornava silenciosamente a cama até o lado direito (esse passo era tão silencioso que muitas vezes era imperceptível, como se a sequência começasse só no passo seguinte), pulava na cama, passava por cima da minha barriga como se nada estivesse acontecendo (e não estava mesmo, nunca), seguia até a outra ponta, até a mesa de cabeceira do lado esquerdo, olhava por ali, suspeitava, permanecia tempo o suficiente para parecer que aquela etapa era tão necessária quanto as anteriores, olhava para mim e voltava, sentava ao meu lado, dormia, entrava nas cobertas quando necessário, deitava no pé da cama quando queria. E assim era. Às vezes, muito secretamente, você parecia me pedir para não continuar, e você estava certo, mas isso eu só observo retrospectivamente. Eu não obedeci e você então me mostrou. Eu olhava por cima dos seus ombros uma luz alcançada para poder dormir. 

Quando você chegou tão minúsculo, dentro da gaiolinha, tão miseravelmente pequeno e molinho, levei você até o quarto, não conseguia sequer acreditar. Ele tinha um laço azul no pescoço, como um presentinho mole e esquivo, mas doce. O que ele pensava? Ele não chorava nem sorria, apenas pulava de um lado para outro do assoalho. Ficou alguns meses dentro do quarto até que as outras janelas fossem teladas e ele pudesse conhecer e se apossar do resto da casa. Eu devia ter suspeitado que alguém estava prestes a macetar minha única alegria, mas eu não tinha como suspeitar. Não tive condições de criar um dia de dentro de uma palavra. Você semeia minhas mãos do jeito errado e nada cresce. Às vezes vejo um vulto e me alegro, são pequenos momentos que fazem o dia valer a pena, ou quase isso. Alguém aparece para me entregar um produto que não pedi ou uma informação que não solicitei, mas que será importante em algum momento nessa travessia pelo horror com corpos empilhados nas calçadas. Minhas mãos têm estrias ou só estão desesperadas? Ouvimos seu miado todas as tardes (sei que não estou delirando, pois não ouvi sozinho), mas será ele ou outra pessoa? Ainda subo no telhado para ver, isso eu prometo. Enquanto isso, deixo os cabelos de molho na tigela com leite que ele nunca consumiu. Ele me envia um olhar perverso e diz, em tom de autoajuda: “você precisa acessar um eu interior mais maciço, mais fibroso, em que cada paulada seja dada para matar”. Meus lábios racham antes mesmo que eu consiga processar toda a mensagem, mas ele só está sendo metafórico, me dizendo para ir atrás das coisas sem esperar por nada ou ninguém. Ainda estou infusionando dentro da cisterna, com os braços destacados do corpo. Peço a ele que se apresente a todos que estão dormindo, é uma questão de educação (que eu não cumpro). Ele então me olha mais calmo, me pede para não ter vergonha de nada que acontece. Aparentemente, tudo o que ele quer é que eu endureça e cresça de uma vez para não precisar sofrer. Ele tem o cuidado de retribuir cada coisa dada, até mesmo o que faltou. Eu adorava dizer que não há um único poste plantado no meu quintal, e você não se aguentava de tanto rir, você ria das coisas que eu ia colocando sobre a mesa. Me desculpe, eu não devia tentar ser uma pessoa, mas não consigo segurar. Minha linguagem é muito limitada, eu sei, não consigo expressar muita coisa, você até cansou de me desafiar. Eu quase me surpreendo com você de novo. Eu sigo até uma próxima hora, cozinho coisas no vapor. Esquento novamente meu chá de sertralina e coloco as nozes para moer no caldo que utilizarei mais tarde, só quando a semana virar. Você era a pessoa mais engraçada que conheci. Você me encontrava com espanto sempre nos mesmos lugares (eu não tinha criatividade nenhuma para me esconder, meu mundo é onde nada acontece). Quantas pessoas ainda pedem para macetar minha cabeça e eu não permito? O mundo continua ótimo, eu só recebi um telefonema ruim durante um temporal. Mas tudo mudou sem o meu consentimento, tudo mudou sem que sequer chegasse o formulário para eu assinar. E assim as coisas vão sendo empilhadas umas sobre as outras como conchas, formigas ou células tumorais. 



segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Pantufas se foi



Pantufas se foi. Eu seguiria sem meu osso para procurá-lo, mas ainda não cresceu uma manhã, e eu não entendo como produzir um começo. Ele já deve estar perto ou longe? caminhei dezoito quilômetros na garoa florescida sobre a cidade. É ridículo demais, eu cabia em suas costas. meu amigo ainda não espera por mim? ainda que eu possa amar sua barriga? meu amigo me assusta quando não me espera. Ele me diz para ficar calmo, eu já disse que continuo apenas por um pontilhado fraco, quase no fim. posso cortar novamente suas unhas com calma, escovar sua crina macia pela manhã. Todos já morreram, eu fui o último que restou? O último de um bando disforme? Fortifico nossa casa. se você voltar, posso tricotar uma cortina, posso retirar os tijolos e lixá-los um a um, sem problemas, e posso limpar a mesa empoeirada. A árvore cresce para cima elevando também os fios de luz tão macios, agradáveis. Levo você até ali embaixo para ver os fios, você ronrona junto a mim, eu abraço você por inteiro, aperto sua barriga e mordo a pele fininha das orelhas. você apenas ronrona e ri até das minhas varizes. Não há mais lâmpadas em flor a serem acesas em um fio. Você torce meu pescocinho para me ajudar a continuar. Guarda minhas pedras em sua mochila pesada. Retorna minhas ligações do ano anterior. Me lembra todo dia, ao acordar, de que sou uma pessoa. Eu custo a lembrar. Com sono, encosto a mão em sua pata. Um mosquito pousa em algum lugar do cômodo. Eu observo sim, é claro. Ouço vozes de crianças me macetando. Não desejei feliz páscoa a ninguém. Eu acho que meu amigo está muito forte  ele conseguiria rolar comigo lá fora, brincar no pasto, incendiar qualquer um que se opusesse. Preparo os ovos desidratados para nossa próxima refeição. às vezes me perguntam se já estou dormindo. Saímos para mais um jantar logo depois de comer. Você pode me ajudar, você foi ensinado a roer. Roemos uma estrutura de aço inteira em poucos dias ou horas. Você puxa a abertura e me coloca como se eu fosse estar confortável. Eu finjo que estou e prossigo (não posso desagradá-lo, ele pode me deixar sucessivas vezes, para sempre). estoura uma lâmina no meu ouvido direito. não quero ter que recortar suas pálpebras, pois estou absolutamente sozinho e precisaria de alguma ajuda humana para resgatar. A vegetação é espessa, cai um pedaço antes de dormir. Faz sentido transitar aqui? Um olho em meu jardim pequeno, This coming gladness em meu funeral. Josefina entrega um buquê de qualquer flor ordinária que ela catou em um terreno baldio. Desejo então um bom dia a todas as coisas que acontecem, ao gato que olha e dorme, à pomba que se desfaz sobre a cama, ao arado tombado na porta, a esse desfiladeiro ao meu lado, ao demônio que me comunica quieto e deixa meus chinelos enfileirados para minha comodidade pela manhã. Agradeço a cada um individualmente, você me ergue do chão, estou encapsulado. Colocamos nossas capas de chuva, a minha está furada como uma peneira, a sua não chega a servir, mas fingimos muito cuidadosamente e saímos pelo meio do mato. Decidimos existir praticamente do nada! Uma coisa acontece, um céu muda seus contornos, sua base de sustentação. Eu rio de qualquer coisa parada. meu amigo salsichas devolve seu pequeno olhar para mim e eu desabo, choro durante setenta minutos e paro logo depois para escorrer o molho das lentilhas que já começam a brotar. Sento-me seco sobre uma coisa qualquer, paro de respirar por um momento e depois volto. Você era a única pessoa que compreendia meu sonambulismo crônico. Como prosseguir sem romper? Retiro alguma coisa que eu disse para fazer você voltar. Ele me olha fixo e diz: "você é meu companheirinho, você não é corajoso, eu também te amo, etc". Eu não consigo chegar a nenhuma parte de mim e nem dos outros. Eu posso tranquilamente desovar cada um deles, mas não você. Mas, e se você estiver certo? E se você esteve certo esse tempo todo e eu sou uma pessoa? Eu rio demais sem conseguir entrar no papel. Eu me lembro a todo momento e me canso, vou ouvir para sempre seu relinchar alegre. E cada vez que levantar da cama pensando em morrer. E cada vez que souber de uma coisinha no quintal, ou cada vez que começar a suspeitar. Agora estou sinceramente partido no meio. De onde vem esse prazer enorme em não pertencer? Duas cavernas se abrem na minha frente e eu entro na segunda. E se hoje digo a você que quero sair? Vamos até o ponto mais próximo, com certeza, a qualquer lugar em que a coisa esteja acontecendo. Ah, vamos sim... eu escovo os dentes maciamente enquanto espero, meu amigo traz toda a roupinha para que possamos sair calmos, indigestos. Você pode encaixar todo tormento em mim e me embalar como se eu fosse o seu tormento. Por todo o trajeto eu não penso que não vou me divertir, pois ele nunca está comigo por brincadeira. Eu celebro cada segundo, apenas me certifico de que meu cálcio esteja sendo absorvido lentamente, sem interromper. Porém, se não tenho mais imaginação, preciso ser levado ao outro lado contigo. Duas horas antes de receber a notícia, escrevi "Eu não posso vê-lo crescer. Eu já estou restrito a um outro universo". Que universo é esse? isso agora é fundamental. Se eu machuco a minha membrana no caminho, você interrompe comigo para reanimar. Volte e me ajude a cuidar por mais um segundo, antes que eu me esqueça! se eu pular fora antes do momento marcado, algo inesperado pode acontecer. Eu já estou pronto para decidir. Não há nenhuma opção no forno, e estou sozinho. Eu posso remar, mas preciso de ajuda, eu preciso que você me ajude a me mover para as próximas horas, senão não consigo definhar. Você não entende que por alguns dias sou incapaz de existir? Achei que você pudesse entender. Você não pode  como ele fez  me dizer que a maionese é uma bela comida, que as coisas são assim e assado, etc. Eu desafio qualquer coisa que possa estar chegando, você me incentiva a continuar sem osso nenhum, vê se pode! Incrível como nenhum osso. O trem está pegando fogo? Por que eu vomitava tanto? Acho que isso também eu nunca te contei. Éramos resolutos e infelizes. Você também pode supervisionar a minha barriga enquanto caminhamos no quintal. Eu deduzo que há uma terceira pessoa aqui conosco rindo por trás da minha cabeça, preparando o campo para me decapitar. Eu sinto e ele ri, ri por completo. Agora é como se todas as horas também estivessem dormindo, ressonando.


sábado, 23 de março de 2019

obituário tardio



Ontem ele saltou a janela trazendo na boca um pardalzinho murcho pingando sangue no tapete da copa. Seguia imponente em direção ao quarto para depositar sobre a cama a ave quase morta, quando foi interrompido. Lamentaram o ocorrido, tentaram remendar a situação. eu não lamentei. Segui o traçado em silêncio e celebrei a conquista, não quis parecer ingrato. Temi pela situação ao mesmo tempo em que me rejubilei sem consternações. Eu sinto pena que ele tenha de passar por tudo isso. Uma coisa crescente bloqueia a garganta e me engasga, distribuo os avestruzes nas fatias de pão. O perigo ronda as coisas mínimas. Eu percebo sua criança mais tarde: ela transborda e tropeça. aguardamos alguém com quem seja possível morrer. Eu tropeço em uma poça de sangue no meio do caminho/uma árvore retorcida brota dos joelhos de um homem morto. eu me estendo a sorrir por uma coisa doida, esquecida. Eu retorci os ossos com as pinças pequenas, rejeitei uma vida inteira, incendiei as provas e comprometi os próximos dias. Meu amigo repousa o ombro em minha face, digo a ele que não traga mais o trofeuzinho ruim pela estrada. Rimos até enxugar, e depois suspeitamos. Eu percebi o frasco vazio. Uma cabeça decepada agora é nossa amiga até o mais profundo, submerso. Terminamos logo no início, despejei o óleo de eucalipto sobre suas coxas e tornozelos. Diamanda e os ratos não me fazem mais nada, eu trago os galhos envelhecidos por todo corredor com força e sem apego, sem sustos. Então você me ajuda a trazer os galhos, eu reforço suas asas, você me paga com grãos de arroz carunchados. Retrocedo em cada sinal, cada bloco de tempo vazio. Você então fica calmo? Porque você está aqui, você até já está. Continua fervilhando, mas não importa o que aconteceu. Procuramos no obituário pela manhã as pessoas que desapareceram em todas as dimensões. Elas escaparam por diferentes ralos, foram colocadas em caixas de isopor. Você torceu meu pescoço e eu pude agradecer, assim o fiz imediatamente, devolvi as ostras fracas unidas pelo fio fino, inobservável. Aqui choveu o dia todo, mas ainda são duas horas. E assim mesmo é. Passei tão mal por não ter existido. As pessoas continuaram sustentando seus ossos enquanto caminhavam na rua, mas sem pestanejar. Eu estive ao seu lado sobre a porta, passei pela trilha de pedrinhas pálidas, saltei por cima de outra coisa que não identifiquei, fui até o pequeno pardal. pedi ajuda, implorei, falei (bastante cruamente), que não sabemos como continuar. Enrolamos um pequeno alpiste e, com as mãos, continuamos sem saber se ele conseguiria se alimentar mesmo depois de morto. E se fosse um grãozinho de milho ínfimo, quase molecular? Formamos outras roupagens para conter as orquídeas. Eu recorto meus lábios com uma tesoura sem ponta, conto os passos na escadaria, reencontro o ruído mesquinho. Eu endureci na cadeira, as pessoas chegaram pouco a pouco e me viram naquela situação. Espalharam rumores pela cidade, disseram que sou lúgubre demais (não sou), e que eu não viveria muitos segundos a mais, nem que tornassem a casa inteira uma caixa esterilizada (com que fundos?). Percebemos a ironia com um susto doce. 

Algumas coisas estão enterradas pela manhã. Um sol nascente, um espelho d'água. Meu corpo pesa com que peso? com que coisa somos destinados a continuar? por que continuar? etc. Escrevemos todas as perguntas com um giz escuro. Ela vem comigo pela praia, passamos por tudo. Cruzamos todas as faixas de areia que se entrecruzam como estradas, como arcos. Nenhum lugar tem alguma saída. Enquanto sintonizo o guarda-chuva no quintal como uma parabólica, você percebe como se pode continuar sentindo, pensando. Você carcome meus ossos como alguém que tem muita fome. Estamos acorrentados no porão. Eu digo que não quero participar dessa palhaçada. Eles me devolvem a confirmação de um regresso por precaução. Eu continuo parado e não tenho sono. Uma mão ou uma pata é depositada sobre meu ombro direito. Recoloco a poeira sobre os sofás. Você me diz, jurando com as mãos juntas (isso é patético), que o dia que nasce é outro, não o mesmo. É preciso acreditar, com certeza, pois um espelhamento acontece. Retiramos as palavras não ditas para não estorvar o campo de diálogo. Um pequeno ovo é recolocado no quintal. Por que você não me avisou que as horas estavam passando? a casa é ríspida, mas está de pé sem assombros. O filho não consegue chegar mais tarde, não fazemos com que sejam estiolados um a um. Somos esquecidos de repente, mas eu faço por existir. Não deduzo nada de cada situação. A nuvem não acorda, a palavra é ridícula. O gato está mancando. Sei enunciar pequenas frases, cheias de sentido. A vida é um orifício penoso. Fazemos uma festa ruim com as sobras. Eu tento me salvar, mas o resultado fica aquém do esperado. As lembranças não cansam de espocar e são reconduzidas a uma sala de espera úmida e insalubre. Não há formação de nuvens. Qualquer coisa me faz chorar com seus ossos, e eu consigo deduzir suas pálpebras se você não se mexer. Fique parado até minha eternidade chegar. 

Aqui nessa janela eu fico então conversando comigo mesmo, espero um sol pulular. Sem dúvida alguma, eu preciso pertencer. Eu preciso que me deixem pertencer, ainda que eu não queira. Nesse estofo macio eu posso me movimentar e criar meus dias. A solidão é fresquinha e não carece de mais nada. A palavra é tranquila, insípida. O pasto é largo e acomoda a todos. Eu então tento reconstruir meus ossos um a um. Espalho meus dias sobre a mesa para poder calcular. Você observa na janela uma coruja, um bicho de pelúcia macabro sustentado por um graveto. Eu receio estar sendo dissolvido num tanque de carpas sem perceber. Eu não represento uma ameaça a nenhum deles, eu fico aqui para sempre, eu conto os blocos de isopor presos em seus cabelos. Dou um beijo em cada um dos meus queridos, confio que a coisa racha por dentro, basta olhar e ver. Estou enrolado por dentro com seus dentes em meu colo. Eu choro em momentos milimetricamente planejados, eu esqueço. Você então me ajuda a esquecer um pouco mais. Peço a você que continue seu caminho. Percebo que não cumpri uma única exigência sequer, dentre milhares. Pela manhã eu aqueço e, logo que abro meus olhos, desisto. Quantos atropelamentos eu já não enfrentei? Vocês sabem. O lugar é fraco, eu posso segurar suas mãos enquanto isso, enquanto o tempo passa. Passa o tempo e o rosto afunda, a coisa morde. E é tão difícil deixar as manchas pela sala, e é tão difícil escrever... A ostra já está redonda. Eu consigo enxergar muito mais à frente. Perco meu papel no chão, imploro por alguma coisa que venha de cima. Pensa com a minha fibra sutil. Implode meus rastros para que eu não possa mais caminhar. Você acha mesmo que estou vivo? Você acredita? Caímos na gargalhada, rolamos na grama alta de tanto rir, uma face da grama despenca para o outro lado. Pessimamente somos ejetados para fora do planeta. não fiz nada por ela, e quanto tempo faz que conversamos. ela me dizia para existir. Sentimos também as correntes. Ela morre e não me avisa, ela morreu e ninguém foi capaz de me avisar. Você guarda meu lamento enquanto eu não puder morrer da mesma forma? O caminho agora segue fechado, você pode vir até aqui e ver. Eu fui cremado naquele dia junto dela, e minhas cinzas depositadas na tigela de iogurte e maçã. Eu não quero defender nada. Eu não quero estar prestes a morrer assim, sem avisar. Eu deixo um beijo para você aqui no final, eu não soube antes, não pude saber. Você entende que eu não pude saber? Posso vê-la em algum momento para me desculpar? Você morreu sem que eu tivesse tempo de me desculpar, sem que pudéssemos passar uma madrugada a mais sobre um tabuleiro, sobre a realidade que eu não fui capaz de cuidar ou entender. Você me encontra depois então para que eu possa me desculpar.  




sábado, 29 de dezembro de 2018

Testamento



O meu grande amigo acena para mim. Ele caminha suavemente empurrando os ossos para frente, quase como um de nós, mas macio como em uma nuvem. Eu componho suas bochechas. Então eu beijo suas bochechas, troco a posição das pernas na sala, termino por incendiar as cortinas que ele já arranhou e torceu enquanto eu não estava aqui. Eu deixei de estar por tanto tempo que ele cresceu quase do tamanho de um boi, um animal parado, um automóvel, um amontoado seco de ossos, uma cavidade. Eu percebo seus olhares de sono, ele está depositado junto à mesa para participar. Ignora uma xícara de café, uma fatia de bolo. Ele me pede para levantar o rosto, endireitar os ombros, manter a postura ereta, esperar, não esmorecer. Eu continuo colapsado, toco sua face, escovo sua crina na primeira hora da manhã enquanto ainda estou sonâmbulo, mas prestes a despertar. ele rasteja pelo meu ombro. eu posso desejar estar amassado. Ele tenta me convencer, com os procedimentos mínimos e sem qualquer rigor, de que sou uma pessoa. Eu não consigo acreditar em nada do que está acontecendo. Eu choro de sono, ele ri da minha sombra, um crânio avulso também olha e ri, mas em silêncio. Eu estou envelhecendo mais rápido que vocês, digo. Não consigo comprovar agora as minhas suspeitas, mas já passei por experiências similares, perdi uma aposta para aqueles que estavam escapando pelo ralo. eles surgiam de cada poça implantada no asfalto, bem na minha frente, e de dentro do sono eu podia macetar um por um e depois ser alcançado por minha própria asfixia. Trouxemos todas essas opções como em um cardápio, e aqui eu não existo, repeti. A vida virou um caldo confuso, cheio de vértices. Esperamos pelo sinal luminoso do espaço. aqui dentro da minha casa eu espero amornar os dias, eu espero as crianças voltarem. Elas me trazem presentes, eu enlouqueço em poucos segundos. Os médicos entram e despejam sobre meu crânio um caldo fervente de uma jarra partida. Meu amigo me olha ainda em silêncio. Eu peço para que, enquanto espera, ele coma seu ovinho. A coisa aparece apontada para mim, eu desapareço dentro das árvores, espero por um universo, com todo arrependimento do mundo. Não estaremos por aqui por muito tempo, não há lugar para nós, Então forjamos outro universo para sentar. Ele permanece comigo sem que a passagem de tempo nos atrapalhe. é muito bom estar vivo e com todos os ossos prontos para nada. eu estou prestes a dilacerar as cordas, cortar o cordão das flores. Eu coleto os peixes e deixo-os sobre o asfalto para que ninguém diga uma palavra ou se irrite. Não suporto seus olhares de rancor, de sombra. Eles, nesse exato momento, estão dispostos em círculo, cantando coisas sem nexo, esfregando as patas na parede. Minha boca está quebrada, não consigo sintonizar uma próxima partida, a percepção requer um novo instrumento, uma folha que possa ser usada como escudo, um galho partido que possa ser usado como espada. Uma nuvem levanta e interrompe o fluxo, lembra as coisas perdidas, despejadas, decompostas. O que poderia ter sido, o que quase alcancei, o que construí por poucos dias, o que construímos por poucas semanas, assim foi, sem nenhuma palavra para colocar ali. E se coletamos todas essas palavras e elas não ocupam um quinto sequer do espaço? sem poder registrar sequer, todo desconforto possível em nossas mãos que mal se tocavam, etc. Ele me alcança cansado, me incentiva a continuar. eu então descrevo todos os rostos pela manhã enquanto espero. cada decepção, uma por uma. O dia é calmo, as pessoas caminham pela estrada de pedra, o pombo reenvia as conexões, eu desisto de viver, caio da escada e quebro um braço ou dois. Ao que eles chegam para me ajudar a levantar e respondo que estou apenas calibrando minhas articulações. todas aparecem infladas, inutilizáveis. estou incansavelmente descolado do universo. encontro uma pomba no chão, peço para que se anime. Doze horas passam novamente, a cidade escurece, some. Acende um sinal luminoso no céu. Todos chegam para comer empovorosos. Desistiram de chegar mais tarde, olharam o caminho cinzento. Durante todo esse tempo eles estiveram prontos para existir, mas nada aconteceu, nada aconteceu sem a nossa permissão, tivemos um controle excessivo, o controle impediu que aparecessem brotos, formas torcidas, rostos pálidos, cascas sem flor. O tempo transcorreu vazio dentro de cada quarto: paredes mofadas, fumaça de incensos cancerígena, muita alegria no interior de cada concha lascada. Como passaram esse tempo? eu adoraria saber. poderíamos fazer uma reunião com petiscos, ansiolíticos e charutos. Vocês poderiam coletar todas as coisas que evitei, sentaríamos em roda, vocês me contariam uma história aleatória, sem pensar, como em um fluxo, e no final seria minha própria história porque qualquer peça poderia ser desencaixada e recolocada em outro lugar sem nenhum prejuízo. o absurdo não conhece nenhuma ordem. Naquele dia em especial foi depositado sobre minha cabeça aberta um colar litúrgico, uma concha macia, parecida com nossos avestruzes pequenos que criamos de manhã. Dois deles foram depositados também em nossa palma. Polvilhei seus resquícios, comecei a chorar sem provas, eles me deram o coelho para macetar, chorei por ele com quem eu mal conseguia falar, depois adormeci, morri em silêncio, com uma curvatura de moscas sobre minha cabeça cicatrizada. Então, quando estou no palco, todos me olham com muita paciência. Pensam: talvez você não vá muito longe, mas esperamos que você possa sair intacto. Eu não posso então nem me virar e já sou rotulado com alguma porção de ossos crus. Ora. Ele se sente subjugado por uma pequena ostra incrédula que também não move meu chão. Cantamos para os cadáveres das crianças que acordam um a um e se juntam a nós para alegrar. O mundo se transforma em um novo inferno, os círculos ardem ainda mais, não entendemos como é possível viver, solicitamos o manual que já vem incinerado. Propomos uma nova reunião para discutir os métodos, selar os propósitos, alinhavar os instrumentos, desistir de um sonho. Finalizamos as concreções. Perguntei a todos que morreram se desejariam existir por um segundo a mais bem na minha frente. Mas eles já fizeram as malas, coletaram as canecas, as escovas, as capas dos botijões. Outro cadáver levanta e me cumprimenta, eu me alegro, derrubo o vaso e espatifa. A realidade é só um osso difícil de roer. Se eu quiser continuar, ele não pode me impedir de viver em nenhum momento. Não posso deixar nada por fazer, não posso permitir nada no interior de uma ponte. A corda é esticada dez vezes para alinhar as fibras. Ele se alegra demais para morrer, ninguém mais suporta o quanto a pele transpira macia, ninguém suporta que ele sorria tanto nessa circunstância, nesse lodo dramático. meu amigo salsichas está sentado e não aparece. Eu recomendo que não apaguem essa imensidão inteira. sem que você percebesse, eu estive ao seu lado, esperei você dormir para quebrar os pratos e talheres, contei as bolhas de mofo no teto, aguardei o carro se aproximar. Eu estive dormindo, confesso. Sei que você não podia imaginar. Eu fui até a próxima boia (só para) não dizer seu nome. Você invadiu como uma coisa extrema, soberba. Mas tudo é sempre muito divertido aqui nesse pasto. Não deixei de rir nem mesmo depois do tombo grotesco, de cada fraturinha. E agora esse é o centro da minha vida. Você então me ouve dizer que o silêncio, com todas as horas, resiste a decrescer. Porque absolutamente nada disso é comunicável. Os tumores podem ser trançados nos pontos do tricô. Mas eu já não vou muito longe, meu docinho. Estou sentado em frente à estátua há milênios. Eu sinto sua falta, e sei que você jamais usaria um tijolo para abrir minha cabeça, meus olhos, ou qualquer coisa parecida. Então pode ficar por aqui, beber o chá que esfriou. Tornar provável uma nova concentração, uma folha ambígua. O meu grande amigo não acena mais para mim. Agora, depois de todos esses meses, ele prefere não ficar ao lado, ele prefere o lugar mais seguro, e eu lhe dou toda razão. 

Pois bem, sente-se e me peça para continuar narrando porque eu já esqueci. Eu amo cada pedaço, aprendi a esperar, a desmaiar com a cabeça no fundo. Olha, pra mim já deu (e então devo rir até sufocar?). Os anos se seguem uns aos outros, a matéria dos anos é porosa, eu peço que me perdoem atentamente. agora eu desejo que todos vocês continuem nas próximas horas como se não houvesse meu pasto ruim. Pudemos parafusar todas as horas de manhã, quando você acordou. O ônibus passou e dele surgiram ondas que recobriram o ponto com colocações muito precisas. Guardei na mala para poder seguir também. Tomo a palavra para me posicionar pelos homens, pelas estátuas. Percebo que não consigo existir. Então peço ajuda a um poste que me acompanha, sinto os sinais como em um dia nublado no qual as coisas começam a anoitecer antes do horário marcado, uma atmosfera sinistra. Propicio as escadas como folhas abertas marcadas para serem trituradas em um quintal. Convido todos a participar desse ritual desorganizado, em que cada um deve falar o que bem entender e depois, torcendo para que o tempo não mude bruscamente, recolocar nossas esperanças em um baú fundo artesanalmente talhado. Eu também não fui essa pessoa, eu não soube construir coisas já com medo de que elas ruíssem. Mas venha comigo nessa pequena bolha pelo espaço. você está deitado, você se conecta com as coisas na parede, com isso que é uma pessoa que morreu, e depois você viajou até uma ponte e depois outra pessoa morreu, e depois você percebeu os espelhos e outra pessoa morreu, e depois. Mas ainda assim, eu tenho medo que a qualquer momento ele caia sozinho, fique preso na grade, se enforque no puxador da cortina. Percebe cada coisa revivendo? Estufando da terra morna, meus pés queimam. mas os dele são recobertos de uma lona espessa, ele pode caminhar horas ou dias sem nenhum desconforto. Se eu quiser continuar por esse caminho, nenhum deles pode dizer nada. E, magicamente todas as conversas aparecem já construídas, faladas, vividas em cada proporção. Podemos apenas colocar no bolso as memórias renovadas e continuar. ninguém está aqui.


sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Há um número de pequenas coisas



Andamos por todos os ventos na cidade. Alguém vai me salvar, – minhas vísceras já estão prontas. Eu repouso nos seus ombros mais secos, cuidando para não esfarelá-los. E assim eu faço cada dia. Não aceito nada menos que um não bem redondo na cara. O sol nasce sonoro, as estruturas do espaço amolecem com o calor. Eu colho suas palpebrazinhas, você me embala para dormir (sem sucesso). Doze bagres são nossos filhos e não sabemos como alimentá-los. Eu estou sonâmbulo até esse poste, mais alto. Vou amassar seus olhinhos para mim. O sofrimento é pequeno, infinito. E não adianta rir em silêncio, eu compactuo com minhas próprias ideias, executo todos os procedimentos sem hesitar. Desconheço outra forma de viver. Me concentro, psicografo enquanto os ovos cozinham, enquanto a coisa atravessa meu crânio. E, quando atravessa, eu não imagino outras possibilidades. Não há outra coisa que possa acontecer. Encolho minhas pálpebras em gratidão. Você está claramente sem reação, como se essa cena absurda fosse indissolúvel. mas você pode usar qualquer coisa para derreter esse gelo sobre meu colo: uma espátula, uma ostra fresca, uma betoneira. Enquanto experimentamos ainda mais o sol (os raios), os planetas continuam em pedaços. Mas eu piso em falso sempre que tento sair. Os pedaços estão disparatados. Apenas não recue, jamais. 

Por onde ele continua andando, eu entendo cada uma das flores depositadas. Vivemos dentro dessa tigela por tantos meses ou anos. Espero que renasçam todas as ervas, todos os pesos. Nada aqui pode fazer sentido, mas também, se algo fizer, será suficiente para destruir uma imagem? uma memória? não se sabe exatamente se toda lentidão foi construída ou rompida, despejada ou evaporada de antemão. Não troquei nenhuma palavra de manhã, nem a tarde. A flor desabrocha em meu ninho. Conquisto os próximos mares a pé, tremendo. Esqueço-me de todas as vezes em que fomos ao quintal, ao arbusto, em frente ao portão. Despedimo-nos antes que eu partisse a pé, eu poderia rastejar pelas ruas sem incômodo. fui embora pelo asfalto, passei pela janela, cobri os ossos, deixei de estar no temporal, cobri os pequenos animais que passavam. Não tem nenhuma importância estar vivo. Não tem problema e é agradável, eu me divirto com cada farpa. Nenhuma pessoa consegue observar, descrever o movimento, o próximo enquadro especial. Não deixo de observar suas sonolências. Você também não resiste de maneira particular. Não falo exatamente nada. Mas não acredite em nada do que está acontecendo, por favor. Eu também não acredito que você está aqui, e você esteve aqui o tempo todo. Eu agradeci e continuei seguindo pela estrada. Chegamos depois pela janela. Entrei, você riu e eu ignorei, como se ninguém tivesse existido na face da terra. Eu deveria estar aconchegado no meu ovo. Depois da longa viagem, chegamos e entramos pela janela. Eu vejo seu bico florescer. Não registro as próximas horas porque elas não passam a contar. Já desisti de todas as escoriações. Quando você resolveu meu braço, meu espaço oco. Não compreendeu nenhuma de minhas falhas como uma construção mole e macia. Vou começar a contar adiante os passos. Vou começar e peço que me ajudem: por onde você continua andando, carcomendo os cantos. Eu então dou um passo em falso. Você coloca suas patas em volta de mim, você sabe que eu não preciso de punição. Todas as próximas ostras estão recolocadas em um pardal, em um próximo fio ensolarado. Não existe nenhum método seguro para sobreviver. retorno para que possamos viver em ventos mais fortes, para que você possa abraçar minha cabeça. Mas se você chega, toca a campainha, entra até aqui sem minha permissão, eu olho cansado, não tenho claro para mim os meus procedimentos, aquilo que pretendo concretizar. Agora preciso de ajuda para reconstituir os passos. você sabe, no fim das contas, quem me tirou daqui? Quem foi levado até o próximo altar? Eu não soube de nada, eu mal retornei as ligações, e assim esperei que uma resposta melhor se formasse (e que viesse de mim, sobretudo). Ninguém sente a pálpebra salgada sem os ovos. Aqui fui depositado e não encantei ninguém. Fui celebrado até a próxima horda, até o próximo avestruz. Fui também silenciado por todos aqueles que entraram nessa casa e sentaram em torno da mesa, quietos, esperando que eu servisse a carcaça de um pardal. Esperando o próximo movimento ruim. Você entende? Desconheço as próximas aventuras. Se eu puder emprestá-los essa forma de viver, eles poderiam olhar. Eles nos olhariam com os beicinhos mornos, caídos? Ele é macio, está ressonando ao meu lado. não perdi a batalha ainda, mas quase. Estourei todos os legumes de uma só vez. Estou psicografando as cestas maiores, colocou o ovo dentro de mim. Mas os mortos não olham. Ah, mas então você também desistiu de todas as ostrinhas, e sem um ruído qualquer que pudesse denunciar a manobra. Derreteram-se os blocos de gelo sobre meu colo. Precisamos montá-los desde que você me conceda uma tarde inteira, sem sair. Não desisto. Já morri, mas queria deixar bem claro que não estou desistindo. Sigo em frente, com sangue nos olhos. Pulverizaram a estrada por onde preciso passar, e que doçura essa pedra rompida na qual tropeço e retropeço. Se você quebra sem querer meu crânio no percurso, eu não tenho do que reclamar. Os demônios me protegem dia e noite com muito cuidado. Carregam as vasilhas de água até a próxima estrada, na floresta, varrem a poeira para debaixo da porta, onde ela some. Sempre que necessário, arrebentam as teias de aranha recém tecidas, destroem todas as células e também os tumores. Agora minha ostra já está fraquinha. Meu deus do céu, eu me recuso. Eu me recuso a existir, e, ainda por cima, existir até quando? Por favor, assinale o calendário na parede. Peço encarecidamente para que, antes de ir, você assinale o calendário, me mostre o limite, o dia do juízo final enquadrado. Essa informação eu só não pude obter. As frestas se abrem para o abismo em flor. O abismo florido escapa por entre as folhagens, despejado. Sim, eu entendo as regras, eu recolho todos meus órgãos soltos pela sala antes de dormir. Todas as aves também secam a alvorada, e se você está aqui. Agora eu estou aqui descansando com meu melhor amigo, ao que ele olha a pomba no muro e eu pego no sono. Todas as convenções se tornam inúteis, pura perda de tempo. Cumprimos com o prometido. Não trouxemos nada que fosse muito pesado ou misterioso. Será que ele já mudou de ideia? Ou desistiram todos do meu pasto? Espera por uma mensagem que nunca vai chegar. 

Ontem ela chorou porque percebeu que vai continuar sozinha. frustraram-se as expectativas absurdas, e os outros planetas já estão em pedaços. Onde estão todas elas, em fileiras? Olhe as ostras no mar: é o próprio inferno. Os gatos dançam conforme a melodia, os pardais espasmam, todos os próximos bois caem do desfiladeiro. A história acaba simplesmente, sem fundo, e eu já estou pronto para submergir, eu que não fui sequer capaz de alegrá-los em uma tarde ruim. Telefono a ele – sem sucesso. peço para que, um ano depois, ainda não desista do meu pasto. Dias depois eu fui retirado. Dobramos todas as entradas para fora. A plantinha escondida no quarto. Sem assustar demais. A casa percorreu vazia. Ninguém soube encontrar seus lugares na mesa de jantar. Apalpei seus pés durante a noite. Nada foi devolvido com proporção, com justiça. Participei dos seus resíduos na festa. Estouros e luzes, com muita alegria pelos contos. Pessoas iam morrendo aos poucos. Refresquei os cantos de sua memória. Sem hesitar um descanso. Mas esse descanso e essa palavra – digo aqui enquanto sou entrevistado – é tudo o que há. Fracassei, minha pequena ostrinha. A história acaba sem que eu tenha sequer entrado nela e aproveitado um instante com os animais. Os vizinhos me veem e aplaudem, agora estou no auge, grito por existir. Estou descalço, porém. As folhas ainda invadem a calçada, até esse mês. Tardiamente, as folhas ainda invadem a calçada aos montes – eu amo vocês em silêncio. E seria adorável estar do outro lado. Ninguém olharia nenhuma sombra. Assim que desviássemos da rota, seria novamente um outono. Mas então onde está a coisa toda? Essa doçura está ao lado, não podemos nos importar. Aqui você já tem sua escovinha de dentes. Pronto para dormir. Todos consentiram com o final do meu universo. Nesses momentos de plenitude eu viro minha cabeça para o teto. Participo de todas as coisas que estão vivas. Eu recolho seus pedais que já estão mornos (eles podem precisar de mim). Eu explico que você é só uma criança assustada demais.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Eu fico feliz que você esteja dormindo



Nenhum osso faz parte de mim, nem mesmo esse que uso para recolocar as coisas nos cabides. Sento no asfalto, recolho meus calos, espero evaporar todas as chances, espero o vapor arrefecer. Cruzo a passagem sem qualquer ruído, começo a desaparecer. Enquanto isso ele me olha, e meu contorno é apenas espesso e ruim (não posso acreditar que fui deixado aqui com as cabras, com os patos assustados, com as pastilhas em flor, com os dromedários, etc. encapsulado, ostracizado como nenhuma outra hora degolada nos relógios).  

Ele observa minhas varizes. eu observo e não me calo. Ele olha, eu desvio o olhar quase sem saber. a construção parece mole. Enquanto isso, olho atentamente seus espasmos. ele apenas resiste, nada parece coexistir. De repente, chega um osso redondo e me assusta. O cavalo parado me azucrina, essa estria azulada me coloca em disformidade com os outros espécimes do mostruário. Percebo e quero apenas engendrar novas horas para cair. Esse massacre carinhoso é o que nos coloca depois da realidade, submersos na calçada, se ainda não choveu. O horizonte é bloqueado, não pude reviver em paz. Ele me olha sem perceber minhas sobrancelhas. Não devolvo nenhum olhar que não me foi dado ou oferecido. Já avisei que vou morrer com muito cuidado e esperança, e até lá continuar ciscando como todos, encontrando insetos para preencher o tempo que é só o imenso vômito em que nadamos com muita assepsia. Para chegar ao instante final e agradecer a todos, enquanto minhas narinas já aquecem com o sono hipnótico, com o tempo sendo comprimido até a espessura de um papel. Obrigado a todos que estiveram aqui, adorei estar vivo, fomos até a outra ponta do parque, cuidei de nossos pastos, dos ombros. Enquanto não acontece, nadamos em frente, com sangue nos olhos. Deus interfere maciamente em cada um dos poros, pedimos a Ele que não nos deixe perdoar nada nem ninguém. Meus olhos circundam o ambiente, cobrem todo espaço mal preenchido: uma lentilha, um espasmo, um quadro de algodão. A vantagem aqui é que ninguém me esmaga, a não ser a coluna de ar sobre meu crânio. Dormimos durante o sereno, perdemos os joelhos para a maré fria. O vento úmido chega para mofar nossas entranhas. abençoar as crisálidas, as conchas presas ao véu da areia, o lixo oceânico, etc. As pombas comem a comida dos cachorros. Ele iniciou a floração pelos meus cabelos, prometeu que me cobriria para sempre e me deixaria dormir, então encostou a unha na superfície flácida de uma bochecha opaca e oleosa (a ternura envolvida apareceu camuflada, enfraquecida). Pego novamente uma outra fruta ou legume e encaixo em sua cabeça como uma coroa. ele não consegue mais rir ou não quer. Colocamos então cada espaço para afrouxar, sua fragilidade foi responsável por outras horas. Eu recebo seus sinais como um animal cansado, não canso de esperar. Quando chega o momento preciso, enfrentamos o que quer que seja com as quatro patas no chão. Ninguém pôde nos avisar, fomos os últimos a saber. Mas não posso esperar aqui para sempre. Tenho medo de que, ao ir embora, ele se torne um pássaro ruim. Empacoto as urtigas para comer mais tarde, reduzo a atenção até o mínimo necessário. Alongo minhas artérias, resseco a ponta do cordão. Me armo como uma ostra, uma aranha fraca. Decido não continuar. Precisamente nesse instante ele chega até mim e me mostra a chave inesperada, sem nenhuma cerimônia ou interrogação. Trago seus braços para o interior da sombra. Você tenta inutilmente fumar um palito de fósforo queimado. Não consigo entender um milésimo sequer de toda essa realidade imbecil. Retiro os fósforos de sua boca um a um, deposito embaixo da maleta para caso de urgência, para uma necessidade vindoura. Preocupo-me com as nuvens e depois com mais nada. As horas vão sendo catapultadas para depois e aqui nada permanece. Optamos juntos por cozinhar as próximas horas até o ponto de ruptura. Ele tomou minha mão, vindo de um ambiente calmo de mistério, eu podia sentir a vibração na outra mão. eu disse a ele que íamos de encontro ao inferno. Sentamos, vieram e fizemos o pedido. Alguma colocação percebida de perto, eu disse a ele que ninguém em uma mata tinha despejado aquilo sem nenhum furor – o que me fez lembrar imediatamente da noite da festa. Caminhando pelo campus escuro, vento seco, alguém surgia aos poucos de um ponto luminoso no descampado. Chegamos até uma parede de vidro, trocaram poucas, pequenas palavras, e voltamos. Hoje eu fico feliz que você esteja dormindo, mas naquele dia eu pude transformar cada carícia nova em um conforto nervoso, arquejante, impaciente. Eu previa a catástrofe, mas o momento era de puro cuidado. As mãos compreendiam, apesar do frio. Apenas ali naquela noite (que durou meio segundo) ou em outras. Não sei bem o que tiraram de mim. Quando ele virou e disse: “você simplesmente não existe!”, lembro que rimos muito ao perceber que, na verdade, isso nada tinha de metafórico. E que para sempre os acontecimentos seguiriam mais ou menos o mesmo circuito: ninguém se importa, bom apetite, coma seu ovo. Eu olhava os espelhos grudados em seus dentes, e algo foi tirado de mim. “você não existe” – ecoa macio, quase inaudível. Você não existe – mas nenhum de nós. Acaba com os meses acumulados, com os anos. Eles são pedaços de árvores. Eu peço encarecidamente para não morrer. Recebo um sinal de que um ou dois dias a mais podem ser concedidos. Uso ou perco a graça, exponho meus dentes, esfrego nas árvores essa coisa óbvia ou estranha, espero roer cada canto de memória, cada lembrança áspera. Fracos são os gestos simples, azuis. Ela me ensinou a sofrer em cada uma dessas etapas, eu admito que aprendi melhor do que deveria, reproduzo agora o peso agoniante. Ela me espera com um cálice, tremendo. Convidei o peixe para outro evento mais tarde. Trouxe os galhos um a um, em segredo. Pude macetar as outras crianças dentro do sono. Não existo porque fui enviado às rochas maiores. Rochas maiores, afastadas do chão. O bagre é quieto e não olha. Quando fui encontrá-lo no parque, sentamos na grama para conversar sobre as coisas que estavam crescendo, morrendo. Olhávamos absortos, ali estávamos nós, olhando a ponte ao fundo e por trás o pôr-do-sol. Era macio o dia, como uma folhinha. Havia coisas nebulosas, incômodas, o que não se poderia saber ou imaginar. Eu não acreditei que aquilo poderia ser uma coisa, que ele ou eu seríamos pessoas, que o gramado era um gramado, e assim por diante. Muitas coisas morrem porque falta quem acredite. Eu sabia esperar o tempo passar, pequenos eventos incompreensíveis preenchiam inadequadamente as falhas, eu extraía do lugar da cabeça uma sombra nova, entregava a ele para que se pudesse comentar algo rápido, sem viabilidade. Pouca coisa dita parecia viável. Quando a projeção mais mirabolante ela lançada entre nossas pernas, eu acenava, dizia que sim. Olhava os músculos soltos, a forma bruta. Sentados na grama, não havia nada de sensacional ou abrupto, nada seria capaz de romper o dia pelas pontas, pela metade, pois ali na passagem de ar o tempo seguia em direção às outras ruas até chegar no portão, no quintal, na garagem, na sala, na escada, no quarto, na cama. Um ruído alto não seria mastigado, seríamos dispostos para dormir como dois pequenos bebês roxos, assustados de sono (eu não tinha sono algum, mas uma concha ou ostra me fazia dormir, também o calor, os estrondos cada vez mais leves). Vinte e sete horas até morrer por completo, eu tenho essa graça (Ele lá embaixo me concedeu, e não devolvo), os demônios também concederam graças importantes, às vezes apenas retroativamente importantes. Outro dia ele tentou me convencer de que todas as espécies são igualmente evoluídas, já que bem adaptadas a seu respectivo habitat. Todas chegaram até aqui, e eu também. O universo já caiu em desuso. Mas não deixei nenhum animal para trás, não consegui caminhar sem minha semente, trouxe o avestruz, a ostra, o bagre que ainda me olho fosco. E cada história é tão mansinha! Eu não acredito. Peço silêncio para terminar. Uma euforia toma conta, sobe até a ponta de um braço, de um osso. Ele disse apressado que não podia se movimentar, disse que não poderiam continuar longe, mas. Façam silêncio, por favor! preciso colocar minha ostra para dormir. É impossível proceder dentro desse alarido. Eu peço que agora me ajudem. As horas acabaram, temos de iniciar o protocolo de desligamento, acionar as autoridades competentes, completar o ciclo e enxugar os olhos que escorrem.

Agora ele me ajudou a me enterrar dentro da cisterna. Pedi as cobertas, o molho evaporado, o espeto. Mas sem sofrer demais eu quero estar junto de você, e você também pode sofrer se quiser. Ele concedeu o aval. Sem pestanejar, compreendi com mais exatidão o espaço de todas as horas, de todos os animais maiores. Tomei cada um pela coleira, passeamos pelo bosque. Agora no pórtico com luz, estou com ele aqui na frente. Chegamos em casa e peço a ele que verifique as vigas no teto. Olhe e não espere desfiar. Senão, a casa cai em cima de nossas cabeças ineptas. Conceda esse espaço para sentar e viver, sem lembrar. Mas cada coisa não acontece, nunca. eu espero espumar o caminho para poder sair. Ele me dá a mão, descemos pelo barranco, por dentro dos troncos das árvores, extraio a polpa dos ossos, escorro o rosto pasmo de sono. 


quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Despedida



Bom dia minha pequena ostrinha. Alguma coisa deposita sua mão sobre nós, dormimos até esperar. E, quando rompe cada ponto, somos obrigados a despencar em algum abismo cuidadosamente cavado. Se não existe perdão, rapidamente somos inclinados a relinchar. Onde estarão elas? qual o domínio mais recente? qual trombeta toca no inferno? Qual tesouro? Qual semente? Apenas aqui há material suficiente para concretar seus ossos, e também os meus. Na mesa já está tudo preparado, flores brancas ou azuis, velas acesas, ossos desmembrados. eles devem sentar ao redor, cruzar os dedos, as pernas, esperar, tecer cada lamúria, suturar algum crânio que necessite. orar baixinho, pedir que escureça violentamente até o ponto de ruptura. isso é absurdamente importante, avançar com raiva e violência até cortar a linha. Entre um silêncio e outro, olhamos para o canto inóspito, a janela foi adequadamente enquadrada. peca por não saber? outros olhos não souberam até então. Pode observar com calma antes que alguma coisa se manifeste, ou que um rombo, um atravessado de raspão. Olha fixamente até a junção dos tetos. Pensa no que acontece, pede ao deus bom que se manifeste se for o caso, mas não espero. Ele pediu que sentássemos na posição requisitada para aguardar o colapso dos rins ou vesícula. Tudo isso ele recebeu ali naquele momento no interior da copa. pronto e suave, pensou, com as mãos sobre os joelhos simples. O que seria pouco a pouco ao longo de um ritual desconhecido? estávamos por esperar. Mas então, cada aposta ali poderia figurar como um novo sofrimento sem que ninguém soubesse. Mas era, acima de tudo, a purificação. Aliás, alguém estaria sabendo fora dali? No corredor, na passarela, no interior do tanque? provavelmente não. Olha a nuvem sombria. Não podemos levantar nem mesmo para verificar, temos de realizar mais de uma dúzia de procedimentos simultâneos sem saber aonde eles levarão. A janela foi silenciosamente aberta para que ninguém pudesse perceber. Uma ratoeira paira sozinha sobre a cômoda, ao lado de restos de comida. Moscas secas caem do outro lado, o vapor floresce as orquídeas, as larvas secas. Olha a nuvem sombria, precisa incendiar cada fragmento do planeta. Todas as grandes infinidades, esse pequeno desenho no asfalto, o funcionário designado não passou para consertar. flores rastejantes, coisas ovaladas, carne decomposta nos sulcos do asfalto, e eu agora sou culpado por ter regurgitado? sem que ninguém perguntasse o que estava ocorrendo? Pontas soltas não desfazem nada do que foi feito janela acima. uma multidão secretamente atinge o prédio ao se deslocar em manada, compensamos com os comprimidos esmigalhados no fundo da garganta. não fez nenhuma diferença, meu deus, a árvore sequer se desloca. não entendo? Um casco bem cuidado, um rosto polido, no espelho de baixo, ali você conseguia terminar, poder sair em paz consigo mesmo e sorrindo. corta cada pedacinho aqui dentro e espera terminar? Por favor, espera. Eu estou disposto a sacrificar tudo por qual rosto ou semente? O ano acaba com tudo. Absorva minha pedra, traga as mãos até a barriga fria; por favor, me envie a ostra cônica. Desista do meu osso, siga em frente sem nada (tudo). Pedais no colo, eu entorto os ombros e pescoço, sigo o suspiro mais silencioso até derrubar as prósperas edificações, e a coisa se manifesta. Ondas não existem. perfazem, contudo, a sala. um riso de criança espoca quietinho no canto, algumas velas já acabaram de roer. O ritual se desenvolve em uma meia dúzia de estágios que desconhecemos. Temos de nos submeter a ele por precaução, antes que toda sanidade se perca em definitivo. Quando se olha com um canto do olho, as frutas secas aparecem penduradas na escada. ele já estava quase morto, olhava e pedia por um sofrimento menor. Apalpamos seus ossos com algodão úmido, não ligamos para os olhares de indignação na mesa, ele perde muito sangue em meu ombro e nesse momento é preciso amaciar sem nada, sem suspeitar. sem dedicar até depois mais tarde esse sonho para mim. Mas o ritual é exaustivo. Corta a árvore até o talo, a estrutura dissolve como meu corpo, sem que ninguém olhe. eu observo transcorrer. Na estrada, no caminho para a floresta. Um anjo-nuvem se desloca, estou um pouco cansada e não apago. Já morri há mais de cinco anos, não volto, me perco na estrada. trago mais carcaças para o ritual, distribuo as cápsulas de sono aos ratos que esperam para mordiscar minhas entranhas. peço a eles que me deixem passar até a próxima. Não me calo, espero que não se sintam efusivos demais para viver. a vida é só um rastro fraco, intrépido. O tempo voa dentro da câmara, doze horas mais tarde tivemos de trazer mais carcaças para que todos pudessem comer. Aos poucos estou voltando, ou é só delírio? Alguém na mesa me pede para que corte as libélulas, me assusto e deixo a faca cair. há uma ostra aqui ao meu lado, ela sussurra em um dialeto que eu já dominei, mas esqueci. Continua sem empurrar. Cada pequeno rastro não segue a estrada, eu rezo para que eles voltem à superfície e para que, segurando minha bacia, eu possa caminhar. não sei se é o melhor modo. Diamanda Galás mastiga meu globo ocular ainda vivo. estoura em lágrimas finas que escorrem e deslizam pelo queixo e abaixo. A ostra azul cimenta meus braços (que já estavam amarrados), e eu apago. Acordo em um estágio ainda mais macabro com os crânios sendo cuidadosamente deitados sobre a mesa, olhando para mim. eu cubro com um pedaço rasgado, subo sentado a ossarina, peço que me deem o extrato mais concentrado para agilizar aquele ritual maçante. depois eu esqueço, despejo meu sangue de volta dentro corpo e volto a respirar. Então me arrependo, caio azul de sono. Pressinto o ar achatar-se sobre a minha cabeça, respiro meu próprio sono hipnótico. Cozinho todas as membranas em uma panela funda, em fogo baixo. Deixo minhas vísceras em uma caixa na portaria, apenas creio e continuo, agora sem pensar em nada. Alguns lapsos de memória ou linguagem fazem apenas sugerir que nada existe, que a realidade é quebrada, que não vale a pena existir, etc. Então é possível crer em todas as coisas que me destroem. eu sinto seus ossos sem roer. Quando chega a madrugada, todos já estão dispersos demais para ouvir o que sussurram os demônios, solto ruídos imperceptíveis já sem paciência, perco um dente cada vez que o vapor sobe da cozinha. Assa um pequeno bebê roxo até tostar. Respiro a maciez tóxica do meu horizonte, espero até acalmar. Ninguém escapa e eu sinto medo pela noite, peço a eles que não soltem minha ostrinha. Ela deve navegar. Deve navegar sozinha. Digo a eles, sempre que vocês rodam eu espero meu ombro deslocar. não digo nenhuma mentira. Os anjos destroncam meus braços e mordem minha cabeça em chamas. Só assim posso trabalhar e viver em paz. Após o ritual, vigiei e orei por quatro dias inteiros até o solo afundar levemente, e eu espero assimilar. Não reconheço em ninguém uma flor, uma penugem. Olho em volta dos olhos também. As frutas secaram tanto que caem no chão e se partem como torrões de açúcar. Espero no desfiladeiro. Ele ainda aquece meus ombros/estamos unidos por um cordão ainda muito frágil (que ele já macetou). Consigo rir sem que nada na atmosfera indique uma floração. O que faço com seus ossos no fim do caminho? Não, essa não é uma pergunta propícia nesse momento. Não estamos preparados para a volta dEle. Não sei esticar. Diga a ele que não acredite em mais nada, não sei o que estou fazendo. Não me deixem engessar por pena, não esperem até que eu colha tarde demais. Outras três horas passam, eles entram, abrem os armários, esfarelam os bulbos de alho, enfrentam os besouros secos, esparramam o sal sem perceber. A fumaça do fogão é excessivamente ácida e corrói minhas mucosas brilhantes. Escorrego em um precipício até perder metade do crânio em uma pedra manualmente talhada. Sei e consigo ver, mas não acumulo nada por medo que minhas articulações frágeis se rompam. Passo a cuidar melhor do corpo já cortado pela metade, não abro mais nada sem antes saber muito bem a procedência. Por exemplo, já consigo me deitar por conta própria, sem desmaiar. Cobre minha crista com sua indiferença azul e pálida. O outro globo ocular não mastigado é um creme claro e aveludado. Recubro meu gordo espaço com a poeira desencaixada das flores, com as sementes de antes. Monto minhas sementes dentro do crânio. Se voltarmos até o alto daquela montanha, ele estará esperando por nós? Ele nos sujou com sua indecência, estamos para sempre marcados com um sinal invertido na testa, e assusta cada canto que possamos entrar e olhar. Mas, se formos até a montanha, ele estará esperando por nós? espero que possa deitar, arrastar minhas cabras e deixá-las evaporando. Já não sinto nada nesses escombros, a tentativa funcionou? Eu deixo de existir e não quero mais voltar.   

Mas qualquer porta está aberta? Depois do ritual eu espero que ela se manifeste. uma luz. Uma sombra macia me segura quando desmaio. Não olho, não escrevo, não percebo. estou tão feliz que mal consigo gritar, engasgo com minha voz. Procuro o pâncreas no jardim para guardar de volta, passo por períodos de sono ou sofreguidão. Não entendo sem andar, estou prestes a chegar ao lugar específico. Não sei se algo orbita em volta de minha placenta pálida pendurada no varal. Abre meu olhar rugoso. termina a lista de acontecimentos para hoje, o espécime depositado no aquário, a rolha dentro do envelope, a geladeira partida, o terreno, o casco renovado. O que fazer com todos os dias que passaram? A flor do algodão se parece comigo? Olhe e me diga. pare de rir, pare de rir e me diga. ela se parece com minha cabeça esmagada? olho para baixo e é inevitável sorrir, o desespero é tudo que existe nessa concha. obrigado por me mostrar a passarela que atravessa a rodovia congestionada, obrigado por me conduzir até ali. encontrei cogumelos, subi nos troncos e caí, você riu? não. eu não me ajudei também. não quis, mas continuei, era levemente frio. esse tempo está devidamente guardado. como dosar as memórias? eu sinto o ruído espacial, algo leva o pêndulo ruidoso. ele virá comigo, comeremos amêndoas escuras! comeremos até vomitar. O final é leve, lúcido. eu respeito seus olhos, construo você com flores e wakame. trago suas flores comigo, espero na calçada. eu despejo e assisto o tempo roer. não espero mais nenhuma asa. trago as sentinelas asmáticas para que não deixem esse fundo de ostra evaporar. trago as plantas alimentícias não convencionais agora já macias, murchas e cadavéricas para jantarmos juntos em uma celebração sob a lua cheia. cubro a cavidade dos meus olhos, me recuso a acreditar.


domingo, 15 de outubro de 2017

Pós-apocalipse



Há uma ostra que segue cada caminho sem roer. Ali, enquanto eu arrumo as meias e batizo seus ossos. Essa ostrinha sobe, sobe esse pontilhado comigo. Foi trazido para o colar das conchas. Ostrinha, segue o pato, abençoa o arado, traz o osso sacrificado de manhã, estoura o câncer em meus olhos, traz ruas ou riachos para meu colo, deposita os embriões na estrada, eles engatinham até o depósito. estão a salvo, tremo de alegria ao olhar. Por favor, não deixe que macetem minha ostrinha. Eu tentei, e muito. eu juro que tentei. Creio nEle como em todas as coisas. o vácuo em meu colo é preciso, deixo de me comunicar, tomo oito litros de chá oxidado por minuto, espero a balsa atracar, ouço o ruído idiossincrático, estico a espinha até alcançar os cabides, peço ao pêndulo que se aquiete. Ouço o pêndulo estiolar. Continuo a escrever e não ouço as vozes na calçada. Peço quieto para que não me atrapalhem. Quais pequenos compartimentos esperam por um deserto. Pode-se retirar ao sentar. Coloque o mesmo tiro para vibrar. Pressione até que saia todo ruído e desmaie. Espere até que nada mais exista. Vamos morrer com cuidado, meu amorzinho? As palavras ainda são promessa. o domínio retorcido de todo um universo. só não apodrecemos porque já fomos cremados. eu adorei quando ela trouxe meu osso para cozinhar e substituiu pequenos corpos, insetos eletrizados, torcidos de manhã. Traz a jóia persa e deposita em minha boca bem aberta, um pequeno rivotril amassado. Há uma ostra, que segue cada caminho sem roer.

sábado, 2 de setembro de 2017

A qualquer momento pode vir o cometa



A qualquer momento pode vir o cometa
A qualquer momento pode vir o cometa
A qualquer momento pode vir o cometa
A qualquer momento pode vir o cometa


terça-feira, 22 de agosto de 2017

sonolência ou arrebatamento



Ya no seré feliz. Tal vez no importa.
Hay tantas otras cosas en el mundo.
Borges, “1964” 




O caminho vem erguido por uma densa neblina que espiraliza até o céu. Cada vez que cada flor despenca, meu deus. olhe, olhe o céu também. Venha até esse ponto aqui, não há vento que não possa nos embalsamar, ainda bem. fique tranquilo. Pequenas coisas acontecem e nos movem adiante, pensa com um lugar coberto por outras horas. A realidade escorre para fora de nós, nada pode ser feito para detê-la. A realidade, essa pequena coisa ridícula, ultrapassa todo encantamento. O fracasso é muito, mas muito engraçado. Apenas aqui dentro uma extensão como essa pode afundar em crateras incompreensíveis. Enquanto engatinhamos pelo túnel, o mundo lá fora recebe estouros que se propagam em todas as direções. Em algum cômodo em chamas, uma televisão ligada, prostrada e sozinha avisa que a Turquia é o país que mais prende jornalistas no mundo. obrigada. Quebramos cada fatia de parede deixada para trás e somos avisados de que não podemos nos mover demais até o amanhecer. O túnel pode ser muito mais do que uma passagem para o inferno. Por enquanto, melhor é não saber. não estamos em boas águas. O caminho cortado é uma pequena abertura em nossa solidão extrema. O tempo está próximo. O túnel é praticamente um cano grosso lascado, passa carcomendo cada lustre ao luar. florescem teias de aranha em nossos cabelos. Temos de agradecer usando um pé ou um braço (ele nos deu simplesmente tudo o que temos). alegremente depositamos tudo na estante e espirramos com o mofo que cresce nas extremidades da ossatura da caverna. Utilizamos os ossos para afastar as vespas do chão. chegaremos a tempo de ver as coisas que devem acontecer depois destas? agora acabou simplesmente a força para amar as coisas? 

Depois da viagem monumental, chegamos a uma clareira no miolo da cidade, e ali cada um recebe a sentença que já vem cozida e enlatada, torrada e partida, e espera em uma fila medíocre, procura um abrigo até que venha o juízo final. A terra é pouco a pouco invadida por anjos de alguma facção nova ou pouco conhecida. Então um demônio puxa a cadeira para que eu possa me sentar. Em uma grande floreira achatada após um atropelamento, agradecemos a todos por terem sobrevivido a essa maré conosco, mas daqui em diante o que se passa é pura brutalidade sem salvação. estranho como ossos sem lágrimas. A atmosfera é sinistra e risível, o evento é uma grande farsa e todos já suspeitam de um derramamento gratuito de sangue. Antes que seja possível raciocinar, o primeiro anjo sobe a escadaria da igreja, toca a trombeta e as árvores e ervas verdes queimam festivamente sem qualquer comoção. As vespas sofrem um lamento e compartilham do mesmo sinal vaporoso. Elas são retorcidas por cima, assim, veja: (o anjo faz o sinal e nos mostra). úmidas e diminuídas. não há nada que possa estancar a dor. coletamos algumas algas com um escorredor de macarrão e fazemos uma compressa tão quente que só termina de esturricá-las. Eu olho as carcaças e me espanto com seus ossos expostos/o assombro é denso e me cancela o riso. Do outro lado da cerca elas renascem com asas aveludadas e são arrebatadas uma a uma. damos bom dia a todas as vespinhas. Todos os olhos são voltados para elas. É quando o segundo anjo despenca do edifício e, ainda torto no chão, toca desafinado e quase sem fôlego a sua trombeta, e um terço de todo mar que não vemos daqui se transforma em sangue espesso. O anjo esfolado também cumprimenta as vespinhas. E eu sinto que ainda falta um preenchimento absurdo. O terceiro anjo acende um cigarro em meio a multidão e caminha tão calmo e preciso... ele nos olha e diz: não tem problema algum se vocês não estão existindo. E depois some. Uma estrela gigantesca e brilhante cai bruscamente do céu, estouram-se as lâmpadas e ela se apaga para sempre. Tambores desconhecidos ressoam tão longe... A nós humanos nos falta um órgão capaz de digerir o absurdo. De uma porta escancarada sai o quarto anjo e dispersa a multidão com bombas de gás lacrimogênio. a terra escurece e cada animal, planta e pedra passa a tossir incessantemente até esburacar. O quinto anjo, como profetizam as escrituras, traz consigo a chave do poço do abismo. Eu não pude saber, pois já morri e não fui solicitado. As trombetas tocam uma a uma, suportamos tudo cuidadosamente sem perecer. eu já morri há alguns anos e não fui iniciado nessa jaula. Achamos tudo de um mau gosto sem fim. meu deus, olhe o rastro sinistro deixado na estrada e nos olhos. A vida é maravilhosa/um sol surge sobre um quintal/uma criança morre em Aleppo/um tumor domina um ovário. mais nada. O sexto anjo rola de cima de um avestruz, cai de costas no chão e diz: mais nada. E apenas isso. Com ajuda dele, fazemos as malas rapidamente e desistimos de cada coisa precisa. Depois ele solta os quatro anjos de pé nas extremidades do planeta, eles matam um terço de todos e descansam. Assim a atmosfera amorna e engrandece. O sétimo anjo ordena que todos fiquem quietinhos enquanto o assombro não vem. Com todas as instruções anotadas em um manual, ele avisa que em caso de emergência, linhas telefônicas e energia elétrica serão cortadas por alguns minutos, horas ou mesmo anos, mas que podem ser restituídas normalmente nas primeiras horas do próximo dia útil. Ele também avisa que a subida é para poucos e, ainda que gratificante, vertiginosa. Recomenda-se alguma medicação para os que tiverem estômago frágil. Àqueles que possuem labirintite, recomenda-se que aguardem o guindaste para poder subir com conforto e segurança, e assim por diante. Agora, se tivermos de realizar a travessia, estaremos muito mais preparados! pois sim, estaremos mais preparados, e mal podemos esperar pelo fim. O saldo foi positivo, sem sombra de dúvida. mesmo com toda ansiedade, o mundo foi feliz e trouxe ossos para dentro de nossos corpos. O anjo segura as batatas enquanto maciamente costuramos o cadáver que deixamos descongelando da noite para o dia. É uma criança que volta à vida assustada e roga por um balde de água fresca para reidratar as membranas, mas que é ainda incapaz de falar. então pede grunhindo, e nós, é claro, prontamente atendemos. obrigado por continuar tão azul e sem cor! a coragem da criança me emociona, eu voo até a palma de um outro lugar, espero com a floração nova nos ombros, caio até rolar do precipício. tudo é tão enfadonho que rolamos pelo asfalto e dormimos por exatas setenta e oito horas até o evento acabar, e não acaba. O sétimo anjo apenas coroa o bolo e cai em sonolência. quem dera pudéssemos dormir também, mas não: temos de enterrá-los antes! avise o anjo que ronca, avise que temos de enterrá-los antes para que possamos ir. por isso a conclusão é simples. O anjo acorda e ajuda a pulverizar um silêncio voraz. Depois de minutos, um apodrecimento suave arranha a hostilidade do tempo. Enquanto ele segura as batatas, torcemos a porta para o horizonte. “eu preparei o livro e comi” – disse a pobre criancinha, e envelheceu junto de todos ao longo dos milênios até morrer. Tão compacta, tão pequena... mais ou menos do tamanho de uma ostra de jardim. O livrinho, que deveria ser doce como mel, tornou-se amargo ao ser engolido. Mas que floração ridícula! retire-os daí, corremos fazendo sinais enigmáticos usando nossa própria sombra duplicada. tire-os o mais rápido daí, por favor, tire-os rápido o bastante para que não sejam deixados, ignorados aqui. O livro amargou o ventre da criancinha que estava quase liberta. Esforçando-se para ter um mínimo de empatia, o anjo disse-lhe: “eu também tendo a não ser muito feliz”. e depois de alguns segundos de silêncio ruborizado, os dois riram, riram juntos. riram até enfartar. ainda estão rindo, na verdade. quando uma parede aponta para nós, ou o caldo suave amorna no prato, então, ainda estamos rindo aqui embaixo e continuamos. E assim vai. uma montanha sonolenta também é arrebatada vagarosamente com a ajuda de um guindaste para compor as curvas do horizonte no paraíso. Todos que estão sendo arrebatados não possuem rosto. O encerramento do evento não faz com que todas as respostas sejam encontradas. pelo contrário. Há uma profunda confusão mental penetrando cada poro dos que ainda estão ali. também entre os abandonados não se vê mais o rosto de ninguém. ainda estamos na caverna? no túnel? na praça? na montanha recrutada? na montanha não estamos, pois não fomos arrebatados. No túnel não estamos, pois pudemos presenciar o arrebatamento. Ainda há tantas coisas no mundo, lesmas retorcidas ao queimar, rochas coradas de calor, enxofre vazando do encanamento, coisas que queimam sutis. Aos poucos todos os pequenos foram arrebatados, uma doce luz ressurge. que luz quietinha, diz uma criança retorcida no asfalto antes de subir. A atmosfera toda é rosada pelo sol murchando no céu, o espaço todo é vazio, acobreado, triste e pequeno. quem olha ali dentro não entende coisa alguma, ninguém consegue dar um passo sequer sem cair em uma rede pendurada como armadilha. sem enfrentar o peso do mundo inteiro. mas também a morte não existe ali dentro porque já aconteceu. todos que estão queimando e percebem isso, cedo ou tarde são pegos sorrindo ou mesmo gargalhando, construindo com migalhas imundas alguma tranquilidade hipnótica. Dizem que alguns deles, inclusive, depois de queimar completamente e perder para sempre todas as suas terminações nervosas, tornam-se monges e resistem para sempre em alegria apática. Os mais prestativos já ajudaram, mesmo cobertos de queimaduras de terceiro grau, a cobrir toda essa ossatura negativa, ajudaram também a varrer a poeira e desativar a coisa amarga que revolve no estômago. A vida é excessiva dentro de qualquer inferno. Os que estão abandonados também enfrentam o peso do mundo inteiro, constroem mapas e forjam estratégias para trazer para dentro do inferno o inseto e o meteorito abaixo do estômago, sem assustar.  



domingo, 30 de julho de 2017

nota no.4


As rosas com bolores

Tenho sempre perto de mim
geralmente na minha mesa de cabeceira
um ramo de rosas
todas as manhãs a primeira coisa
que faço quando acordo
é observar atentamente as rosas
a ver se algum bolor poisou
na pele das rosas
quando isto acontece
é muito raro
mas eu gosto de coisas preciosas
e sou paciente
deixo de dormir
para observar o crescimento
desigual e lento do bolor
a pouco e pouco o bolor
vai cobrindo a pele da rosa
ou antes
alimentando-se da pele da rosa
adquire o feitio da rosa
mas a pele da rosa
não esta por baixo do bolor
desapareceu
é preciso estar sempre atenta
porque no instante em que
o bolor não pode alastrar mais
a não ser alastrando-se sobre
si próprio
e alimentando-se de si próprio
ou seja suicidando-se
naquele acto de infinito amor
por si próprio
que é afinal todo o suicídio
a rosa pode andar pelos seus pés
antes de ela partir
beijo-a na boca
depois ela parte
e desaparece para sempre da minha vida
então eu vou dormir
porque estou muito cansada
as rosas com bolores cansam-me.

Adília Lopes

terça-feira, 27 de junho de 2017

Apocalipse de manhã



Cai o meteoro em um exato momento. Atinge o sino pela manhã. Todos caem ao mesmo tempo do universo, reduzem a ostra até um patamar sensível, enterram o mesmo peixe seis vezes, roem a cutícula das aves, mostram o rosto em formato azul. Apagam aqueles que cintilam, continuam sem galhos. Precisam continuar sem galhos e ruins. Cozinham dentes com papoulas, esperam até um ouvido absurdo acabar. Roubam o rosto das horas, transpõem para o tecido interno a poeira das grades, respiram o ar escuro que levanta das moitas em chamas, vivem até que um vento penetre ruim e sem vida, precisam de um ouvido que cuide. Hoje o dia é escuro e não há postes. Olhe para as plantas e espere até reviver. Mas ele cai tão sonoro! cai tão sonoro e depois abafa. Junte as peças e varra por dentro até que ali nada mais se veja. E feche também as janelas  é claro, o ruído não nos deixa adormecer. As pessoas aguardam o meteoro com uma alegria sonora. Torcem os cadarços e não penduram as roupas que já estão secas. Obviamente, pois apenas aguardam porque sem hora marcada pode vir uma destruição. Uma mariposa fraquinha e ressecada pousa na fresta. Torce os olhos de sono/caminha contra o vento. Continua sem galhos. Precisa continuar sem galhos e ruim. Um homem também recebe o impacto mesmo sem a ossatura frágil de uma mariposa. Ele rola os olhos antes mesmo de ver a urtiga espirrar (com o sol entrando em ondas trêmulas primeiro na pele e depois nos nós do crânio e abaixo do queixo e nariz). O ruído ali pode ou não ter asas ou nervos escorridos pelos membros atingidos. Depois eles retornam de ossos traumáticos, acalmam doces o piso quieto da memória. Pisam até que não se veja mais o céu. Percorrem o ondulado sonhando, respirando um ar úmido das cobras quietas. uma pomba nervosa devora um osso em minutos. Crescem de veias azuladas, permanecem fiéis à cópia crescida das flores, permanecem dentro das raízes. Crescem de corredores mais largos. Já a mente não pode desafinar com esse apito. Pede ao apito que se aquiete? Onde estão os postes? Olha a carne espessa e assombra. Continua na clareira, olha o abismo com migalhas. Acerta o alvo, traz a couve para a cesta e semeia. Agora tudo é uma nova luta pela sobrevivência (cuidamos para não sermos enjaulados em um novo universo). Aqui nada mais carece de explicação. Estamos quietos e respiramos o abismo. A dor rompe cada membro comprimido. Outra bomba caiu precisamente sobre o corpo seco da mariposa. Queimamos juntos e as cinzas são amontoadas sobre o carpete e mais adiante. A mariposa nos olha e não sabemos como afrouxar o tronco sisudo da porta ou como romper com cada miolo de árvore quieta. e não é possível comunicar. Como então fugimos daqui? Olhamos o comprimento de escada diante da parede, a janela falsa aponta para uma clareira quase escura como o céu, mas quase não é possível sair daqui. E se rompermos o caule das plantas? Sem hesitar, o céu cobre as horas aquecidas pelo cometa, atravessamos o mural onde fervilham os olhos de todas as espécies um a um. Pode-se virar uma palavra de um lado pro outro e não há nada ali, nada pode ser deslocado se há um completo vácuo de sentido. Rompemos até chegar a uma pesada caverna. A mariposa já não tem pernas para andar, e muito menos nós. Depois que o cometa desceu, as malhas ressecadas da mariposa foram reduzidas a uma cinza espessa (granulosa e incisiva), os pés das pirâmides foram dobrados para dentro de modo que as pessoas pudessem passar sem enxergar por baixo do túnel o tempo passando, que era ruim e no entanto não poderia ser descartado em lixo comum (pois tóxico). Até o céu não podemos crescer. sentimos apenas fervilhar o poste até o mural. Ainda que a atmosfera tenha virado forno, nossos ossos estão tão frescos que poderiam ser apunhalados um a um. A fumaça esconde a origem. Agora a mariposa repousa quieta sobre uma batata no jardim. Cada pessoa que passa está tão viva e tão morta que nada na atmosfera consegue ajudar em uma recuperação sadia. Devemos aceitar todas as perdas, sem exceção? Naquela floresta enorme e sem caules (pois foram todos retirados por conta da metamorfose das ogivas), esperamos que eles tragam o presente satânico, cozinhamos os dentes com papoulas e fechamos os olhos para esperar  uma lágrima escura evapora antes mesmo de escorrer. A dor é um cálculo permanente. As palavras não traduzem dor alguma, não compõem uma sentença coerente, mas apenas se amontoam como broches, como conchas, como partes de carros quebrados, como fósseis de crianças. Sem contar a eles nós podemos amassar nossos próprios rins e misturá-los ao purê? Dois pêndulos caem desorientados, os olhos não saem de suas órbitas e as ondas de vento apontam um caminho. e não há um caminho, apenas as ondas de vento simulam um caminho. Um peixe pula da base e se suicida. Por que não pudemos chegar junto dela? atravessar o cesto com cascas? oferecer a mão suja de café? O olho azul registra peças daquele luar? Uma coisa infeliz rosna em meu colo/a morte é a coisa mais engraçada que já aconteceu. Todas as esperanças cínicas são renovadas após a destruição. um braço sem corpo acena alegre no meio dos escombros, uma perna sem tronco chuta um vaso de samambaia partido e se corta. e poças de sangue seco, e carcaças de crianças sonolentas. o que fazer com tudo isso depois de sonhar? o que fazer com tudo isso depois que a quimera se dissipa e o calor todo despenca junto com todas as palavras ao mesmo tempo? Um feto amortecido olha e sussurra um provérbio que ninguém entende. rompe o luar mais fraco e não permanece no mesmo posto (ninguém permanece). Torce isso, torce como um galho. não reduz a nova fumaça, não é isso. torce no olho. coloca uma fileira sem ondulações. Olhamos o palco vazio: mas então ninguém vai salvar ninguém? É isso mesmo? sim. agradavelmente a ostra responde do fundo menos sonoro do oceano que sim, é isso mesmo, uma gralha ou outra responde, um tufo de terra na parede resmunga que sim, a cobertura de mofo no lustre, os blocos de vento, os pólipos e as treliças. a nuvem de poeira é pouco a pouco dissipada para o oceano morto. um universo de cascas de besouro incendiadas, toda lágrima secou na atmosfera infernal e também os olhos esturricaram e agora lembram ameixas secas compradas a granel. deus olha tudo e acha bom.